sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Netflix: A FILHA PERDIDA (2021, de Maggie Gyllenhaal)


Conforme sói acontecer, a adaptação de uma obra literária mui apreciada pelos leitores - no caso, o romance homônimo, escrito por Elena Ferrante - gera muitas expectativas e inúmeras comparações com o material original. A diretora, estreante em longas-metragens, parece ter sido bem-sucedida em sua empreitada: além de receber o prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Veneza, é alvo de variegados elogios dos espectadores, pelo modo como conseguiu representar as angústias maternas, em três núcleos tramáticos interdependentes. Na verdade, tratam-se de pontos de vista relacionados às experiências de vida da protagonista Leda (interpretada na maturidade por Olivia Colman e na juventude por Jessie Buckley).


Na primeira dessas vertentes relacionais, Leda interage com os moradores e visitantes de uma região turística na Grécia, além de lidar com uma solidão muito particular, que a leva a cometer um ato súbito de cleptomania emocional; na segunda, ela projeta-se em Nina, a jovem mãe vivida por Dakota Johnson, que, tal como ela, sente-se oprimida pelas obrigações parentais, enquanto mergulha numa paixão extraconjugal; a terceira, por fim, é narrada em 'flashbacks', e ajuda-nos a compreender as pulsões e os receios de Leda nas situações anteriores, sobretudo no que tange ao romance interditado com o viúvo Lyle (Ed Harris). Queda em aberto o mistério inequívoco (e sempre renovado) da feminilidade...


Costurando a estória de maneira lenta e apurada, a diretora e roteirista faz com que experimentemos sentimentos distintos em companhia de Leda (vide o suspense atrelado aos encontros com o marido violento de Nina ou a perturbadora seqüência em que um grupo de jovens tumultua uma sessão de cinema). As interpretações são boas, mas a intensidade actancial parece tolhida pelas regras sociais de diplomacia que as personagens executam em público. Assumindo ser egoísta, a posteriori, Leda desobedece as convenções esperadas de subserviência, o que intimida os homens ao seu redor, desde o pai de suas filhas (Peter Sarsgaard) até o rapaz que trabalha num bar e que parece estar flertando consigo (Paul Mescal). Ao conversar com suas filhas através de ligações telefônicas - o que soa desconfortável para todas elas - a impressão que fica é que o título do filme refere-se à própria Leda - que, não por acaso, num determinado diálogo, compara-se à sua mãe. É preciso ler bastante nas entrelinhas para sentir o que é proposto por este filme!



Wesley Pereira de Castro. 

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Disney+: ENCANTO (2021, de Jared Bush, Byron Howard & Charise Castro Smith)


Na primeira canção do filme, quando Mirabel (dublada por Stephanie Beatriz) apresenta-nos aos dotes mágicos de sua família - em resposta a alguns garotos da vizinhança -, ela exclama que um deles não deveria estar tomando café, visto que esta bebida seria reservada apenas aos adultos, já que causa ansiedade. O modo como ela enumera infortúnios nacionais convertidos em benesses particulares, numa velocidade assaz acelerada, comprova que ela é também ansiosa, o que faz com que, ao notar a sua relutância em assumir qual o próprio dom, uma das crianças a associe à negação. Há tanta informação nesta seqüência que, por alguns instantes, imaginamos a quantidade de elementos não percebidos numa única sessão, sobretudo para um público infantil. E é justamente essa a temática do enredo: a necessidade de rever situações anteriores, para que possamos aprender algo com o que não tínhamos condição de saber num primeiro contato!


Não obstante os delicados estratagemas de evasão associados aos conflitos políticos da Colômbia, o roteiro consegue gerir de maneira afirmativa os seus caracteres pitorescos: a abundância de frases e versos em espanhol (num filme falado em inglês) propicia um sentimento viável de inclusão, ainda que este seja atrelado à assimilação capitalista. As canções compostas por Lin-Manuel Miranda são ótimas e as composições originais de Germaine Franco são encantadoras. Pode-se reclamar que o modo como a trama é resolvida soa um tanto apressada, mas a ideologia precisa disso para manter-se ilusória e fascinante. Caso contrário, a trama redundaria no fatalismo do qual o personagem Bruno (magistralmente dublado por John Leguizamo) é acusado e convertido em pária. Não se pode sequer pronunciar o seu nome, em boa parte do tempo. É assim que é erigida a harmonia familiar?


Ao perceber as rachaduras nas tradições longevas da família Madrigal, Mirabel cumpre a função recorrente concedida aos protagonistas dos longas-metragens contemporâneos da Disney: precisa desobedecer às regras dos mais velhos, a fim de que possa referendar definitivamente os seus preceitos. Quando desafia a sua avó Alma (María Cecilia Botero), Mirabel constata que há algo muito mais importante que os dons, ou seja, as pessoas que os carregam. E, assim, a harmonia sobrenominal é restabelecida, com o apoio inequívoco de Casita, uma residência prosopopeizada que concede aos seus habitantes traquinagens diuturnas. Como não ficar fascinado por este filme? 


Em meio a uma musicalidade inebriante e a uma fotografia repleta de cores e flores, os roteiristas de "Encanto" surpreendem ao questionar as razões instrumentais que validam o realismo mágico. Trata-se de uma obra que precisa ser revista e questionada, no afã pela evidência de méritos sobressalentes àqueles que jorram das ações eufóricas dos personagens. Nos créditos de encerramento, um "cafeinador" aparece entre os técnicos. Caberá aos adultos explicarem aos espectadores infantis aquilo que é desanuviado pela aparente normalidade da protagonista. A mensagem final, ainda que convertida em clichê vendável, é primorosa: viva a resistência da cultura latino-americana!



Wesley Pereira de Castro. 

sábado, 25 de dezembro de 2021

Netflix: A MÃO DE DEUS (2021, de Paolo Sorrentino)


À primeira vista, salta aos olhos as comparações com o estilo felliniano, afinal intencionais, conforme percebemos nas diversas emulações de filmes famosos do diretor ou na seqüência em que Marchino (Marlon Joubert), irmão do protagonista, resolve fazer um teste de elenco e é rejeitado por ter "um rosto demasiado convencional". Segue-se um momento idílico, em que Fabietto (Filippo Scotti) ouve a voz do cineasta selecionar as fotografias de diversas mulheres, a maioria delas opulenta, o que desperta a libido já iridescente do rapazola. Em meio a personagens mui pitorescos, identificamos o que parece ser a obsessão estilística de Paolo Sorrentino: demonstrar que a beleza é cercada de vazio!


Se, num primeiro momento, isso surge de maneira cômica (vários homens espremidos num dos lados de um barco, enquanto uma mulher toma banho de sol, completamente nua, no outro), logo intuímos a dimensão trágica do mesmo recurso, quando esta mesma mulher, Patrizia (Luisa Ranieri), fica à beira de um penhasco, como se quisesse saltar. Trata-se da esposa do tio de Fabietto, sua primeira musa, em quem ele pensará quando for desvirginado pela baronesa Focale (Betty Pedrazzi), numa bela cena, em que ela confessa que está cumprindo uma importante missão: "te ensinar a olhar para o futuro". Junto a um encontro com o realizador niilista Antonio Capuano (Ciro Capano) - que diz-lhe que "sem conflito, tudo é sexo, inútil" -, o intento é acertado: Fabietto consegue chorar e, após uma viagem para Roma, é redesenhado enquanto alter-ego do próprio Paolo Sorrentino, nesta terna evocação autobiográfica...


Muitíssimo bem-interpretado e repleto de seqüências que confirmam a equação imagética supracitada (alguém geralmente é destacado num espaço amplo e vão), este filme possui um ritmo mais lento que as demais obras do diretor: a jornada de descobertas e aceitação interior do protagonista - que precisa excluir o diminutivo de seu prenome para seguir em frente - é permeada por instantes antológicos e por recorrências burlescas, como a irmã que nunca sai do banheiro. A reconstituição do encontro inicial entre Patrizia e um monge infantil demonstra que o personagem principal foi sobremaneira exitoso em seu anseio de devolver alguma fantasia à sua vida. Reencenar a perda dos pais (magistralmente encarnados por Toni Servillo e Teresa Saponangelo) demonstra o quão merecedor de encômios é este cineasta, dotado de idiossincrasias plenamente reconhecíveis! 



Wesley Pereira de Castro. 

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Netflix: NÃO OLHE PARA CIMA (2021, de Adam McKay)


Por mais que a criticidade humorística deste filme seja urgentemente necessária, no que tange à deslegitimação do negacionismo crescente da contemporaneidade midiatizada, é mister destacar que esse tipo de comédia célere tem seu quinhão de culpa na situação abordada: em seu pendor satírico para as chacotas institucionais e a imediatez reativa a tudo que acontece, o tipo inteligente de piadas escritas por Adam McKay, desde as suas colaborações televisivas para o programa "Saturday Night Live", encontra a sua contrapartida numa realidade espectatorial sobremaneira agendada, em que nada é levada a sério. Neste sentido, ao converter a personagem cientificamente perspicaz e emocionalmente desequilibrada de Jennifer Lawrence numa espécie de alter-ego, o diretor escamoteia a sua culpa no processo, pelo qual ele não merece ser condenado, visto que tudo é controlado pelos poderes dominantes, inclusive o que parece opor-se a ele. Sendo assim, ao zombar de uma empresa oportunista de telefonia celular, mais aparelhos são vendidos; ao escandalizarmo-nos diante de algumas futilidades noticiosas, mais estas são consumidas; ao rejeitarmos explicitamente políticos chulos, mais estes recebem divulgação. São os paradoxos inequívocos do século XXI!


Não se pode negar que este filme é muito engraçado e extremamente acertado em seu variegado painel da tragicomédia eleitoral hodierna: além de enfatizar que  há um lado "menos pior" a ser escolhido (permeado por inevitáveis contradições - vide o skatista evangélico interpretado por Timothée Chalamet), o roteiro conclui com um truísmo benfazejo, o de que a melhor coisa da vida é estar ao lado de quem amamos. Além disso, a associação dos nomes dos atores, nos créditos finais, aos objetos que permitem o reconhecimento imediato de seus personagens reitera o quão fetichistas somos hoje em dia. É um problema? Sim, mas também um apanágio incontornável. A estratégia mais aplicável de sobrevivência é seguir em frente - e prestar atenção ao que a personagem de Ariana Grande canta na espertíssima "Just Look Up": "Tu estás lidando com a verdadeira tristeza, e é tudo culpa minha/ Desculpe-me, meu amor/ Vou curar teu coração, vou segurá-lo em minhas mãos/ O tempo é tão precioso, não temos muito sobrando agora". Simples, não é? 


A importância da trilha musical de Nicholas Britell neste filme é definitiva, pontuando o ritmo irregular dos longos 138 minutos e inserindo acordes espalhafatosos que trazem à tona emanações de alegria e tristeza, simultaneamente. O humor do filme é trágico, chegando mesmo a reproduzir (com intentos satíricos) os discursos de ódio e incitação à ignorância, típicos dos representantes da extrema-direita, hoje em dia. Apesar de estar caricato, Jonah Hill cumpre bem a sua função metonímica, enquanto Mark Rylance, Meryl Streep, Ron Perlman e Cate Blanchett estão hilários enquanto representantes das grandes corporações, do Poder Executivo, do Exército e da indústria do entretenimento, respectivamente. A eles, soma-se Leonardo DiCaprio, no papel ambivalente de um astrônomo brevemente corrompido pela fama. Humano, demasiado humano. 


Em termos sardônicos, "Não Olhe Para Cima" possui aspectos semelhantes ao clássico "Dr. Fantástico" (1964, de Stanley Kubrick). Como é produzido por uma grande plataforma de 'streaming', possui em seu âmago intricadas incongruências - novamente convertidas em blagues, como no caso do astro hollywoodiano que divulga uma superprodução sobre a ameaça de um cometa prestes a destruir a Terra. Assistindo ao filme, gargalhamos de nós mesmos, movimentamo-nos catarticamente em relação a um estado de coisas pelo qual somos coletivamente responsáveis. O essencial, entretanto, está fora das telas, às vezes subestimado. A seqüência do desembarque num planeta alienígena é impagável!


Wesley Pereira de Castro. 

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

BELFAST (2021, de Kenneth Branagh)


O fato de o roteiro ser baseado nas lembranças de infância do diretor justifica certa bidimensionalidade na encenação (os cenários são mostrados de maneira ostensivamente artificial, por exemplo), mas é justamente esse apelo nostálgico que torna chocante a frieza com que os eventos ocorrem no filme: ainda que, sim, haja alguma emoção e que os atores levem a sério as suas interpretações, não há factualidade em relação ao que acontece, de maneira que a montagem de Úna Ní Dhonghaíle revela-se bastante problemática. Apesar de haver a morte de um personagem simpático na trama e de o 'close-up' final de Judi Dench possuir algo de sensacionalista enquanto demarcação de uma despedida, as situações apresentadas nesse filme poderiam ocorrer em qualquer ordem: há uma rixa entre protestantes e católicos no início, mas isso é sub-explorado; há uma série de vinhetas protagonizadas pelo garotinho Buddy (Jude Hill), mas tudo parece sobremaneira circunstancial... 


Os pais de Buddy - interpretados por Caitríona Balfe e Jamie Dornan - são inexpressivos e, não obstante a pretensa relevância da cidade que empresta seu nome ao título do filme, pouco sabemos acerca da capital da Irlanda do Norte, com base no que é visto neste recorte mnemônico do ano de 1969. Os melhores momentos são aqueles em que Buddy e sua avó são flagrados assistindo a peças de teatro e filmes musicais, quando as cores quentes invadem o preto-e-branco da narrativa. E aquilo que o garoto testemunha nos faroestes antigos que vê na TV é reafirmado nos embates da realidade, sobretudo na seqüência em que a canção-tema do clássico "Matar ou Morrer" (1952, de Fred Zinnemann) serve para divulgar, em câmera lenta, uma determinada marca de sabão em pó: era para ser um clímax dramático, converteu-se em publicidade barata!


A trilha musical de Van Morrison ajuda a demarcar o tom nacionalista dos diálogos, o que é anunciado desde a abertura colorida, em que imagens contemporâneas de Belfast são exibidas enquanto ouvimos a canção "Down to Joy". Noutro bom momento - igualmente publicitário - do longa-metragem, o pai de Buddy canta "Everlasting Love" num baile, numa demonstração de efusividade que parece isolada do que ocorreu anteriormente. Ficam as frases de efeito do avô encarnado por Ciarán Hinds, num enredo que encena alguns aspectos interessantes de uma época política e religiosamente conturbada, mas que contenta-se com as aparências. Neste sentido, elogiar a bela fotografia de Haris Zambarloukos (colaborador habitual do cineasta) é quase um contrassenso: falta ao filme a essência afetiva prometida na divulgação de seu projeto pessoal!



Wesley Pereira de Castro. 

segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

FRANCE (2021, de Bruno Dumont)


O mais recente filme do excêntrico diretor Bruno Dumont é surpreendente, sob vários aspectos: além de erigir a quebra de expectativas como mote central do enredo (de modo que isso consta no discurso final da protagonista, sobre a importância da valorização do presente), apresenta uma faceta inaudita em sua carreira, consolidada pelos dramas rurais, com requintes abundantes de cinismo. Aqui, lidamos com uma sátira contemporânea e eminentemente urbana, num recorte metalingüisticamente midiático. A polissemia nomenclatural da personagem-título não é causal: seja no prenome homonímico em relação ao País em que ela vive - não tão acolhedor quanto é publicitariamente disseminado -, seja no sobrenome herdado do seu marido, que anuncia morte. Tudo isso se confirma, mas o filme não pára de nos surpreender!


Protagonizado por uma Léa Seydoux em estado de graça, "France" revela as suas intenções sardônicas logo na abertura, quando a protagonista entrevista o presidente Emmanuel Macron de maneira desdenhosa, trocando gestos zombeteiros com a sua produtora Lou (Blanche Gardin, propositalmente odiável). Especialista em reportagens sensacionalistas em países não identificados que estão "em guerra permanente", France passa por uma mudança drástica de personalidade quando atropela, acidentalmente, um imigrante árabe. Torna-se depressiva e, em seus arroubos públicos de tristeza, converte-se em assunto do mesmo tipo de jornalismo que pratica. É quando resolve abandonar tudo - e novas surpresas acontecem!


Lacrimejando em quase todos os momentos, daí por diante - porque sente-se efetivamente triste e porque sabe que isso capitaneia a audiência -, France lidará com reviravoltas emocionais que a deixarão ainda mais exposta: apaixona-se (e é traída) por um rapaz que responde às suas cantorias românticas com a entoação do 'Dies Irae', em latim, numa das várias situações que são igualmente ternas e cômicas. É difícil categorizar genericamente este filme: nossas reações ao que acontece com a protagonista misturam-se bastante, como também ocorre com ela própria, que, às vezes, parece saber que está sendo dirigida enquanto personagem fílmica - vide o modo como ela olha solenemente para uma câmera superior não-diegética, após conversar, numa praça, com Baptiste (Jawad Zemmar)... 


Musicado pelo genial e versátil Christophe [1945-2020], este filme apresenta sonoridades distintas em seqüências contíguas, pontuando as súbitas alterações de humor que caracterizam France. Hábil manipuladora de seu público, ela aprende a espetacularizar as lágrimas que brotam espontaneamente, tornando-se uma manchete ambulante de si mesma. Longe dos holofotes, ela é perseguida pelo obcecado Charles (Emanuele Arioli), que suplica para que ela o rejeite, "mas não rejeite o nosso amor". Progressivamente, o filme direciona-se para o ambiente campestre, e as recorrentes caricaturas caipiras do diretor cerceiam a protagonista. Ela é tão carismática, entretanto, que, não obstante agir de maneira oportunista e controladora, torcemos por ela, apegamo-nos sinceramente. Num terreno aparentemente distinto de seus temas corriqueiros - é um filme muito mais "leve", por exemplo - Bruno Dumont orquestra uma espalhafatosa e descontraída obra-prima atual!



Wesley Pereira de Castro. 
 

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

A CRÔNICA FRANCESA (2021, de Wes Anderson)


Uma belíssima carta de amor ao Jornalismo, que termina com uma miscelânea de olhares, em resposta à pergunta: "o que vem depois?". Num contexto em que a prosa autoral é esmigalhada pelas falsas notícias e pela urgência parcial da manchetes escandalosas, o que o diretor nos oferta como homenagem anacrônica soa explicitamente direcionada a um séquito de amantes envelhecidos. É como se identificássemo-nos com a personagem de Frances McDormand, que confunde as razões para o derramamento de suas lágrimas, visto que elas são provocadas por fatores tão íntimos quanto exteriores: há muito gás lacrimogêneo no ar e, ao mesmo tempo, como não sentir-se triste? A narração graciosa de Anjelica Huston em relação ao percurso de vida do fundador da publicação titular é impregnada de ímpeto informativo e emoção, simultaneamente: "a objetividade jornalística não existe", diz mais de um personagem, no episódio central do enredo. Mais uma vez, a identificação é evidente!


Não obstante a excelência técnica do cineasta, que leva a cabo todas as suas esperadas idiossincrasias (possibilitadas por uma equipe habitual de colaboradores), há uma breve irregularidade no modo como os episódios são apresentados, o que também pode ser interpretado como metonímia da diversidade editorial da revista fictícia, ostensivamente inspirada na canônica The New Yorker. Situar a(s) trama(s) na França também carrega consigo alguns problemas, denotados pelo capcioso nome da cidade inventada pelo diretor, Ennui-sur-Blasé. Mas nada que a magistralidade do elenco não resolva: a apresentação do local pelo personagem de Owen Wilson, no segmento sobre "o repórter ciclista", é primorosa!


Nos créditos finais, são lidos agradecimentos a diversos articulistas de The New Yorker - como James Baldwin, Lilian Ross e Joseph Mitchell (para ficar em apenas alguns dos artífices seminais do jornalismo literário) - que inspiram de maneira evidente os personagens. As personificações são excelentes, confirmando a suma competência do realizador na direção de atores (exceção verificada nos exageros modernosos de Lyna Khoudri): Tilda Swinton está muito engraçada, e Jeffrey Wright parece estar parodiando Orson Welles. Ecos de Jacques Tati e de Federico Fellini podem ser verificados nalgumas seqüências, num filme que reproduz à risca as obsessões de quem sofre de Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC), incluindo a "memória tipográfica" e a pouca afinidade cartográfica atribuída por um dos cronistas aos homossexuais. A trilha musical de Alexandre Desplat é sardônica em sua imitação do enfado no primeiro episódio, reiterativa e pouco perceptível no segundo mas sublime e entusiástica no terceiro, cujo tema permanece assobiado por muito tempo após a sessão...


A concomitância entre o falecimento e o aniversário do personagem de Bill Murray bem como a tristeza artística conferida à guarda prisional vivida por Léa Seydoux são algumas das inúmeras emanações de brilhantismo que são detectadas neste filme, que também conta com Benicio Del Toro, Elisabeth Moss, Cécile de France, Liev Schreiber, Edward Norton, Saoirse Ronan e Timothée Chalamet em breves entregas actanciais dotadas de paixão (e algum cinismo). A fotografia de Robert Yeoman, mais uma vez, mistura imagens coloridas e em preto-e-branco, além de diversas quadraturas: a fascinação geométrica do diretor assume o píncaro nesta carta de despedida a um modelo de Jornalismo em extinção. Por que estamos chorando, afinal? 



Wesley Pereira de Castro. 

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Festival de Brasília 2021: ABDZÉ WEDE'Õ - VÍRUS NÃO TEM CURA? (2021, de Divino Tserewahú/Xavante)


O primeiro aspecto que salta aos olhos neste documentário é o tom aparente de contradição em seus discursos: alguns líderes indígenas comentam que a COVID-19 é uma doença criada pelos homens brancos e que, portanto, não atingirá as aldeias de povos originários do Brasil. Um desses líderes veste uma camiseta com publicidade cristã. Mais à frente, manchetes de jornal invadem a tela, anunciando que a mortalidade entre os índios xavantes, por causa da pandemia, foi superior em mais de 160% aos demais segmentos da população brasileira. Fica evidente que a contradição foi implantada pelo processo colonizatório, do mesmo modo em que, numa filmagem antiga, um narrador comenta que os contatos iniciais entre homens brancos e os xavantes foram pacíficos, sendo que os primeiros carregam enormes facões, enquanto pretendido símbolo de boas vindas. É preciso repetir o que acontece a partir daí? 


Ao invés de realizar um documentário linear sobre o morticínio de seus parentes, o cineasta xavante Divino Tserewahú acrescenta múltiplos aspectos autoafirmativos em seu relato: fala sobre a importância dos rituais tradicionais de sua tribo (mostrados em imponentes 'plongées'); agradece ao cineasta Vincent Carelli pelos cursos ministrados no programa Vídeo nas Aldeias; comenta sobre os perigos contaminadores da imposição de costumes brancos (a obrigação das vestimentas, por exemplo); e surpreende ao ressignificar a tese de que, para os indígenas, quando eles são fotografados ou filmados, parte de sua alma é retirada. Se antes isso era enxergado com receio, os depoentes comemoram este acontecimento, no sentido de que eles podem continuar ensinando após as suas respetivas mortes: "cinema é espírito. Quando somos filmados, nosso espírito continua vivo"!


Em termos técnicos, alguns "defeitos" podem ser notados: a montagem é confusa e as legendas possuem diversos erros de concordância e grafia. Mas esses defeitos mais uma vez denunciam o ímpeto colonizatório, no sentido de que eles evidenciam uma tentativa de expressão que é também sobrevivencial. O diretor registra alguns enterros e explica que, em sua aldeia, o luto é cumprido através de práticas distintas (raspando-se os cabelos, por exemplo). Imagens de várias obras do diretor são apresentadas, reiterando a suma importância do projeto que o capacitou audiovisualmente. No discurso das pessoas filmadas - que estão "onde nasce o Sol" -, a esperança é a de que a pandemia será completamente expelida, após o consentimento massivo dos indígenas em relação à vacinação. A pergunta do título é direcionada a nós, portanto, com um elemento adicional: acerca de qual vírus estamos falando?



Wesley Pereira de Castro. 

segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Festival de Brasília 2021: SAUDADE DO FUTURO (2021, de Anna Azevedo)


No início, uma citação de Guimarães Rosa [1908-1967]; no desfecho, uma de Fernando Pessoa [1888-1935]. Entre uma e outra, referências ao mar, à saudade, à maternidade. Partindo desses temas afins, a diretora alinhava relatos de mulheres, crianças e também homens, ao longo de três continentes: em Portugal, ouvimos o escritor Valter Hugo Mãe; no Brasil, Martinho da Vila cantarola num barco; e, em Cabo Verde, um grupo de jovens confecciona instrumentos musicais, enquanto uma senhora relembra o processo de independência da ilha. Em todas as seqüências, as ondas do mar quebrando na praia... 


Obedecendo a uma estrutura similar de eventos em cada um dos países, Anna Azevedo dota o seu filme de extrema poesia, seja quando viúvas portuguesas refletem a sobre a importância das vestimentas pretas no processo de enlutamento, seja quando mães que perderam seus filhos, nas favelas do Rio de Janeiro, dignificam as lembranças de seus entes queridos. A vereadora assassinada Marielle Franco [1979-2018] é evocada enquanto símbolo de persistência. Uma das entrevistadas comenta o quão doloroso foram os desaparecimentos políticos ocorridos durante a ditadura militar, visto que o luto era impossibilitado pela ausência dos corpos. Saudade é algo que perpassa tudo isso!


O título do filme é extraído da fala poderosa de adolescentes que fazem rimas após a leitura da Carta de Pero Vaz de Caminha, escrita em 1500: eles comemoram o fato de serem uma geração com alguma esperança, enquanto praticam movimentos de capoeira. A fotografia é belíssima, servindo-se de imagens em contra-luz e de enquadramentos primorosos, como o das inúmeras cruzes num cemitério improvisado à beira-mar ou o do pé de um indígena coberto de barro ressecado. Compartilhamos os sentimentos descritos pelos europeus, sul-americanos e africanos lusófonos, no que tange à falta que sentimos de quem amamos - e que, por algum motivo, não está mais ao nosso lado. A tristeza possui a sua beleza inequívoca também...



Wesley Pereira de Castro. 

domingo, 12 de dezembro de 2021

Festival de Brasília 2021: DE ONDE VIEMOS, PARA ONDE VAMOS (2021, de Rochane Torres)



A organização deste documentário em capítulos foi uma opção muito hábil por parte da diretora, no sentido de que reproduz a lógica orgânica e amplamente compartilhada do modo como os povos originários do Brasil transmitem seus conhecimentos, subdividindo-os em aplicações específicas, mas mantendo-os integrados através de elementos gerais da Natureza. Neste caso, os ruídos onipresentes de aves psittaciformes conferem unidade à macro-narrativa, que condensa ambas as sentenças contidas no título: o grasnar ininterrupto de araras e periquitos é, portanto, um excelente recurso acessório de montagem!


Depois de um prólogo, no qual vemos um casal indígena divertir-se num parque de diversões - e eles regressarão no desfecho, sentados no sofá, comprovando que assistiram ao mesmo material audiovisual que nós -, inicia-se o primeiro dos cinco segmentos, "O Filme de Juanahú", no qual este personagem manuseia uma câmera de filmagem e ensina o que sabe a um conjunto de crianças, com quem discute os sonhos que deseja transformar em enredo. O olhar interessado dos garotos e a efusividade com que Juanahú explica o funcionamento do aparelho conquista de imediato a atenção do espectador, que é ainda mais agraciado no segundo segmento, "O Segredo dos Homens", sobre um ritual de amadurecimento masculino preservado pela tribo acompanhada pela diretora.


Optando pela edição alternada (um líder indígena comunica as dificuldades em manter as suas tradições culturais, enquanto vemos um grupo de rapazes erguer um mastro, para a concretização de uma das festas anunciadas), lidamos mutuamente com uma dupla realidade enfrentada pelo povo Iny, que vive na aldeia de Santa Isabel do Morro, em Tocantins: de um lado, a urgência na preservação dos costumes; do outro, as táticas cada vez mais severas de evangelização cristã, que proíbem as práticas ancestrais da tribo. Isso é ainda mais explorado no segmento "Macaco Preto", em que sabemos que a designação Karajá é problemática, pois associa estas pessoas a um grupo de primatas. Uma jovem (Narúbia Werreria) que teve acesso ao conhecimento branco ('tori') referenda a suma importância da autonomeação. Excelente e emocionada intervenção!



O quarto segmento, "O Espírito de Aruanã", é o mais disperso, quiçá pela necessidade de proteger as nuanças de uma das cerimônias mágicas daquela tribo. Segue-se o breve capítulo "Iny: Nós Mesmos", que acompanha um trajeto de barco, enquanto anoitece na floresta. A fotografia em preto-e-branco é esplêndida, realçando tanto a beleza natural do ambiente quanto a simpatia daqueles seres humanos fantásticos. Um filme repleto de homenagens, que faz jus ao que é anunciado enquanto pergunta e resposta, simultaneamente. Conforme reclama um cacique entrevistado, "esse tal de suicídio não existia em nossa cultura". Para que o ciclo da vida seja benfazejo, os dois verbos titulares precisam estar devidamente equiparados, tal qual acontece neste documentário! 



Wesley Pereira de Castro. 

sábado, 11 de dezembro de 2021

Festival de Brasília 2021: ELA E EU (2020, de Gustavo Rosa de Moura)


Depois do registro bem-sucedido de des/re-estruturação familiar que atende pelo nome de "Canção da Volta" (2016), o diretor e roteirista Gustavo Rosa de Moura confecciona mais um panorama de enfrentamento emocional, permeado por muitas canções. A despeito da boa participação de Lucas Santtana como compositor da trilha musical original, recorre-se a clássicos alheios para ecoar as transformações sentimentais vivenciadas pelos personagens: quando vão à praia, as mulheres cantam "Os Mais Doces Bárbaros", na antológica versão ao vivo da banda homônima; enquanto pinta sobre os desenhos de sua filha, Bia (Andréa Beltrão) ouve o relato fúnebre de "Birdland", de Patti Smith; o título do filme é explicado através de uma canção de Caetano Veloso, numa seqüência demorada, em que marido e mulher aplaudem na platéia e se reconciliam internamente. A proposta é ótima, mas a execução é atropelada, como se fosse um programa televisivo de videoclipes... 


Apesar do argumento prenhe em dramaticidade, as situações são representadas de maneira quase telenovelesca, o que dilui o impacto exordial, talvez devido à celeridade rítmica: sente-se falta da duração estendida dos planos, das sutilezas relacionais, dos silêncios... Além de o ambiente em que a família vive ser muito barulhento, pois Carlos (Eduardo Moscovis) é marceneiro, os diálogos são superpostos, fala-se muito mais do que é ouvido - exceção concedida à extrovertida Sandra (Karine Teles), que, em sua função de cuidadora, é quem mais presta atenção aos anseios da recém-desperta Bia. Sua filha Carol (Lara Tremouroux) e a nova esposa de seu marido, Renata (Mariana Lima), têm seus cotidianos atropelados pelo súbito despertar da mulher que estava em coma há duas décadas: a primeira tranca o período na faculdade, a fim de utilizar os cuidados de sua mãe como aplicação prática de seus conhecimentos sobre Neurologia; a segunda, por sua vez, não suporta o cansaço advindo de sua rotina como professora. Sente falta do marido, agora predominantemente dedicado ao reconhecimento de Bia enquanto amante e amiga. Em meio à pletora de bilhetes indicando o nome de objetos pela casa, Renata aponta para a própria vagina e grita, indignada: "isso é uma xoxota. Serve para lamber, para meter...". A comemoração de aniversário de Carol foi imediatamente estragada, portanto!



Como se percebe na descrição acima, o enredo do filme é poderoso na elaboração de seus clímaces emocionais. O problema na transposição roteirística foi o afobamento actancial: os atores estão devidamente entregues aos seus papéis (sendo nítido que eles contribuíram bastante na improvisação dos diálogos), mas as interações soam artificiais, sobretudo no que tange à protagonista, eventualmente risível. Há uma melhora de tom próximo ao final, mas o 'flashback' praiano parece deslocado, no que tange à maneira íntima porém distanciada com que os personagens se relacionam: os carinhos tendem a ser interditados, ainda que muito necessários. Neste sentido, é como se as irregularidades fílmicas fossem uma metonímia das dificuldades de entrosamento amoroso experimentadas sobretudo por Carol, que não sabe como dividir adequadamente os seus afetos entre a mãe biológica, a mãe de criação e a sua namorada (Jéssica Ellen). Ser desenrolada ou assumir-se piegas? A não-resposta a este dilema afeta tanto o filme quanto a jovem personagem. Mais uma vez, sobram (e soçobram) as boas intenções...



Wesley Pereira de Castro. 

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Festival de Brasília 2021: ACASO (2021, de Luís Jungmann Girafa)


É sempre bem-vindo quando um realizador ousa trazer à tona uma estrutura experimental de narrativa, mas o sobejo de pretensões pode estragar o resultado: em diversos momentos desse filme, por exemplo, parece que estamos diante de uma videoinstalação conduzida pelo Sérgio Bianchi, tamanha a quantidade de ressentimento que emana dos personagens. Estrangeiros, hedonistas, mentalmente perturbados, eles encontram uma via de convergência na mulher gentil (e poliglota) que vende caixinhas de música em plena rua. E, no desfecho, um consolo egrégio: as cores surgem na tela, e a narração de Roberto Machado comenta: "num dia qualquer, algo de definitivo acontece".


Ainda que a tessitura dos encontros fortuitos, enquanto ideário, possua um charme inquestionável, os personagens deste filme são, em sua maioria, ostensivamente desagradáveis. Desajustados voluntários, eles gritam nas ruas, cantam, compartilham com o espectador estórias pessoais: um deles assassinou a mãe de criação; outra fugiu de um casamento aprisionador; um terceiro comemora o fato de ter se livrado, por uma única senha, do alistamento militar obrigatório, nos EUA, durante a Guerra do Vietnã... Todos eles interagem com as peculiaridades da cidade de Brasília, acrescentando ao enredo detalhes que carecem de comprovação local. A lógica citadina aparece como personagem adicional, desorganizado, em razão de o diretor (estreante em longas-metragens) ser também arquiteto. É um filme-tese!


Apesar de seus intentos comprobatórios, o filme malogra justamente por ter se tornado obsoleto muito rápido: tendo sido filmado em 2017, os gritos de "Fora Temer", que são pichados nas paredes e pronunciados por alguns dos personagens, demonstram-se vãos. Idem quanto à reclamação um tanto petulante da jovem que critica um artista por pertencer à "geração da utopia". Os monólogos e diálogos são atravessados pela bazófia e pelo desdém. Cabe à vendedora de caixinhas de música alguma conciliação, ao ofertar gratuitamente os produtos que são comumente furtados. O elenco é competente e a trilha musical é muito boa, mas algo desanda no conjunto: é um filme que tematiza a incomunicabilidade urbana, mas que comunica-se precariamente, enquanto linguagem. Vale enquanto tentativa, ao menos: os brasilienses, com certeza, compreenderão bem melhor o filme! 


Wesley Pereira de Castro. 

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Festival de Brasília 2021: LAVRA (2021, de Lucas Bambozzi)


Servindo-se da mesma estrutura híbrida que balizou "Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo" (2009, de Marcelo Gomes & Karim Aïnouz) ou "Pajeú" (2020, de Pedro Diógenes) - no que tange aos encontros documentais que ocorrem em meio a um trajeto ficcional de caráter topofílico -, este filme expõe a devastação ambiental financiada em várias cidades do interior de Minas Gerais. Definindo esse Estado como aquele que foi "construído sobre a fé o extrativismo", a narradora pergunta-nos, em tom de lamento: "o que remove mais montanhas?". Na cartografia afetiva então desenhada, Camila (Camila Mota) volta para o Brasil após anos morando no exterior, onde estudara Geografia. Da mesma maneira que há superposições em suas pesquisas sobre a extinção da vegetação regional, visto que os mapas estão em constante transformação, as imagens fílmicas são também fundidas, aproveitando inclusive trabalhos anteriores do diretor, que denunciam os crimes praticados pelas companhias de mineração nas localidades abordadas. Como conseqüência inevitável, a solastalgia, angústia emocional advinda dos danos causados ao meio ambiente... 


O ponto de partida para o retorno da protagonista foi o rompimento da barragem da Samarco, em 2015, na cidade de Mariana, que causou muitas mortes e uma degradação ecológica de proporções exorbitantes: o Rio Doce, por exemplo, foi contaminado por lama tóxica, de modo que suas águas não servem mais para criação de peixes, agricultura e, principalmente, consumo humano. Camila passeia por lugares abandonados e destruídos, enquanto conversa com pessoas que insistem em permanecer nos lugares onde foram criadas. Visita a cidade-natal do poeta Carlos Drummond de Andrade [Itabira, conhecida pela quantidade alarmante de suicídios] e encontra líderes que opõem-se à implantação de novas áreas de escavação. É quando rebenta a barragem de Brumadinho, em janeiro de 2019. Mais pessoas morrem, fauna e flora são fatalmente atingidas e inúmeras denúncias são feitas. Torna-se cada vez mais difícil para Camila sentir-se parte de algum lugar!



Ao longo do filme, a câmera não é interpelada por nenhuma das pessoas com quem Camila interage, o que reforça a indiscernibilidade entre documentário e ficção. Porém, ela própria começa a mostrar-se de maneira inteiramente participativa (no início, ouvimos a sua voz e vemos apenas parte de seu corpo, como se o seu olhar estivesse sendo reproduzido enquanto prolongamento subjetivo), assumindo a sua alienação involuntária, declarando que o que está testemunhando serve como uma carta de advertência para mais espectadores. O didatismo torna-se explícito, o que já ficara evidente no encontro com o líder indígena Ailton Krenak, que reforça a importância das associações entre existência cotidiana e sonhos, em sua comunidade, e conceitua progresso como sendo "a queda do céu". A duração estendida do percurso (1h41') passa a ser atravessada por algumas redundâncias (vide a fala de Camila num encontro de mulheres ativistas) e os pesadelos recorrentes da personagem são transmitidos na tela. É um roteiro que conscientiza e emociona, mas que, nalgum momento, sobrecarrega o resultado com as suas intenções estritamente demarcadas, direcionando a reflexão para um propósito bastante específico. Isso é um problema? Não necessariamente. Mas faz com que a fluidez narrativa do início seja substituída por um discurso um tanto previsível, ainda que sumamente necessário. Seja como for, é uma produção que cumpre o seu itinerário de maneira efetiva: alguns dos neologismos utilizados neste texto foram aprendidos no filme! 



Wesley Pereira de Castro. 

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Festival de Brasília 2021: ALICE DOS ANJOS (2021, de Daniel Leite Almeida)


Se, ao mesmo tempo, a inspiração explícita em "Alice no País das Maravilhas", romance infanto-juvenil de Lewis Carroll, foi muito bem adaptada para o contexto nordestino, o excesso de decalques tramáticos (no que tange ao modo surrealista como os personagens aparecem) limita um pouco a criatividade do roteiro, que apropria-se espertamente de elementos do cangaço, devidamente trasladados para a linguagem simplificada das crianças. Ainda que eventualmente empostada, a interpretação da garotinha Tiffanie Costa é muito boa - sobretudo porque o diretor evita o excesso de cortes que caracteriza parte da filmografia brasileira contemporânea. Ao invés disso, ele prefere uma marcação teatral, de modo que o filme lembra bastante os autos tipicamente encenados nas cidades do Nordeste.


A personagem-título não persegue um coelho branco, mas um Bode Preto (Fernando Alves Pinto); ela não encontra um gato sorridente, mas um líder indígena espirituoso (Pajé Aripuanã), num umbuzeiro; em lugar de uma Rainha de Copas sanguinária, deparamo-nos com a inveja da esposa de um coronel suíno, em relação à Rainha do Cangaço, Bonita (Vicka Matos). Passeando pelo País das Macaúbas, Alice tem a oportunidade de demonstrar empatia em relação a um calango e a um dos vários severinos que existem naquela região. Em comum, o fato de eles terem aprendido a ler com a professora Indira (Cris Magalhães), que, nos delírios provocados por uma doença terminal, acha que ainda está numa escola de Angicos, em 1963. Enquanto personagem assumidamente freireana, ela acredita que "educar é amar". O filme põe isso em prática de maneira lúdica!


Não obstante as quebras de ritmo e os clichês associados às convenções de gênero, freqüentes nos filmes infantis, esta obra consegue abordar questões como coronelismo, devastação ambiental e genocídio dos povos originários do Brasil de maneira inspirada. O fato de ser um musical é positivamente surpreendente: as letras escritas pelo próprio diretor são bem acompanhadas pela trilha musical de João Omar. Nas divertidas interações com os personagens, diálogos que reiteram a sabedoria de Indira e o modo arrojado como ela enfrenta a vida (e, por extensão, também a morte): "quando o Sol se põe, ele vira poesia. Quando alguém vai embora, é que nem o Sol". No desfecho, uma semente é plantada, uma árvore cresce. A narrativa equivoca-se um pouco ao forçar novamente a aproximação com outra obra carrolliana, a fim de que a protagonista possa declamar, olhando para a câmera, que "o cinema é um espelho". É um truísmo breve: as boas lembranças seguem vívidas após a sessão. A lição foi transmitida com esmero!


Wesley Pereira de Castro. 

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

OS PRIMEIROS SOLDADOS (2021, de Rodrigo de Oliveira)


Da mesma maneira que, num rompante inspirado do enredo, os personagens esforçam-se para encontrar algo positivo a partir da experiência com a AIDS, o maior problema deste filme está num aspecto que, isoladamente, seria um grande trunfo: a sua excessiva teatralidade. A primeira aparição de Rose Moreau (Renata Carvalho) que o diga: encolerizada após uma situação de preconceito vivida dentro de um ônibus, ela aproveita um encontro casual com Maura (Clara Choveaux) para declamar um monólogo deveras expressivo, acerca de seus sofrimentos pessoais. Ao enfatizar, em sua fala, que "travesti não é bagunça", fica evidente o interesse conscientizador - em âmbito contemporâneo - do roteiro, que possui diálogos bastante contundentes, mas instaura certa artificialidade na composição empática dos personagens, insuficientemente definidos, em muitos casos... 


Apesar de não ser a protagonista, é Rose quem detém a centralidade ativa, ao surgir numa espécie de documentário sobre a sua própria vida, que será fundamental para a ressignificação pública (e militante) de um 'flashback' gravado em VHS. Num palco, ela dubla "Um Homem Também Chora (Guerreiro Menino)", de Gonzaguinha, com voz masculina. Emocionada por causa da pungente letra, ela esquece que estava interpretando, e expõe-se como o ser humano que é - o que, segundo ela, "quebra o clima da festa". A teatralidade, neste caso, surge como componente essencial de sobrevivência para os homossexuais retratados, em termos de redefinição discursiva das próprias angústias. Mais tarde, o protagonista Suzano (Johnny Massaro) pergunta, num surto de infelicidade e constatação de que está moribundo: "de que adianta tudo isso?". A resposta surge politicamente, através da voz de Ney Matogrosso, em "Fala", da banda Secos & Molhados, executada durante os créditos finais: "se eu não entender/ não vou responder/ Então, eu escuto"... 


O modo como as canções surgem no filme é sobremaneira poderoso: além da trilha original de Giovani Cidreira e das músicas supracitadas, deve ser destacado também o momento epifânico em que "Seja o Meu Céu", de Robertinho de Recife, sintetiza o que estava sendo buscado por aquelas pessoas, incompreendidas pela sociedade, no réveillon de 1983. Neste sentido, o personagem principal - ainda que dotado de existência dramática - usurpa um pouco da potência do filme, ao trazer à tona alguns comentários familiares que frustram-nos por causa dos caprichos classistas, também evidenciados em seu sobrinho Muriel (Alex Bonini), que, ao saber que seu tio não aparecerá numa determinadas festa, reclama, em tom de pantim: "e a gente, vai se divertir como?". Não obstante ser mimado, caberá a ele a definitiva ação do filme, confirmando um ímpeto de amadurecimento moral anunciado em diversos momentos. Afinal, "as pessoas vão embora", conforme faz questão de dizer enfaticamente Suzano à sua irmã, como se trouxesse à tona uma boa notícia que nem todos compreendem.


Há algo de muito estranho nas interpretações: é como se, ao representarem quem também precisa representar na vida pessoal, os atores mantivessem seus personagens um tanto eclipsados, o que dificulta a identificação subjetiva. Isso é compensado pela reconstituição eficiente do desamparo na fase inicial de contágios pelo HIV no Brasil. Ao narrar um filme fictício que o obseda desde a infância, Suzano serve-se de uma frase do curta-metragem "A Pista" (1962, de Chris Marker) para justificar o título desta obra: a imagem pela qual ele é obcecado é a de um soldado que, num momento de desespero e fome intensificada, decide comer um pedaço de sua própria perna, a fim de sobreviver. Vomita bastante ao fazer isso, mas obtém êxito, permanece vivo. O espectador Suzano não lembra bem o que ocorre depois, pois "assistiu aos momentos de heroísmo com os olhos fechados". Adiantou muito o que ele fez, entretanto: a despeito das irregularidades e inconsistências fílmicas, algo muito importante é convertido em assunto. Falemos mais sobre isso! 



Wesley Pereira de Castro.