quinta-feira, 31 de outubro de 2024

MEGALÓPOLIS (2024, de Francis Ford Coppola)


Tal como a feijoada, o sarapatel é uma refeição que, inventada sob o jugo da necessidade (aproveitar o que estava disponível - no caso, vísceras), foi gastronomicamente chancelada, após algum tempo, de maneira que, a depender do restaurante em que é servida, converte-se num prato chique, vendido a altos preços, por conta da delicadeza do processo de cozimento. Em diversos aspectos, "Megalópolis" (2024) é como se fosse um sarapatel cinematográfico: projeto antigo - e dificultado, em diversas instâncias - e sumamente pessoal do realizador Francis Ford Coppola, que está sendo eventualmente incompreendido por público e crítica, mas que periga ser reverenciado como 'cult', em breve. Caso ainda exista cinema, vida inteligente e/ou o próprio mundo habitável, daqui a alguns anos... 


Neste filme grandiloqüente - mas tramaticamente regido a partir da simplicidade da fábula que ele assume ser, desde o crédito titular -, encontramos aspectos que já foram abordados em obras anteriores do diretor. Seja a reflexão sobre as conseqüências trágicas do poder, em contrapartida aos afetos familiares, marcante em "O Poderoso Chefão" (1972); seja o romantismo que não tem receio de ser 'kitsch', característico de "O Fundo do Coração" (1981); seja a opulência redentora de "Drácula de Bram Stoker" (1992). Ao final, a moral da estória é deveras elementar: o amor transforma e salva. Ainda que o sobejo de credulidade na transmissão deste recado soe um tanto duvidoso. 


Explicamos: se não se duvida que o protagonista Cesar Catilina (Adam Driver), um "homem do futuro, mas aprisionado no passado", tenha efetivamente se apaixonado por Julia Cicero (Nathalie Emmanuel), a pretensa inocência atrelada a esta personagem é prejudicada pela desenxabidez da atriz que a interpreta, de modo que os seus olhares lânguidos são abafados pelos exageros de tudo o que acontece ao redor. Outro aspecto problemático é o comodismo com que se resolvem algumas situações, a fim de garantir um "final feliz", como a morte anticlimática de Wow Platinum (Aubrey Plaza), de maneira incompatível com a sua esperteza de 'femme fatale', e a confissão de Franklyn Cicero (Giancarlo Esposito) acerca da participação no laudo adulterado que responsabilizou Cesar pela morte de sua primeira esposa, sanando num breve diálogo uma rivalidade longeva. Junta-se a isso o desaparecimento súbito de personagens relevantes como o narrador Romaine (Laurence Fishburne) e o "consertador" Nush Berman (Dustin Hoffman).



Quem quiser elencar defeitos neste filme, terá muito a enumerar, mas também desperdiçará a oportunidade de se esbaldar numa "superprodução independente" que eleva ao paroxismo os seus intentos: a montagem é alucinógena, a direção de arte é acachapante, as atuações são exageradas e as homenagens a diretores como Federico Fellini e Jean-Luc Godard são evidentes. Mas Francis Ford Coppola cozinha o seu sarapatel de maneira extremamente autoral, contando com o apoio de atores que entregaram-se por completo ao frenesi exigido nalgumas situações. Neste sentido, a seqüência do casamento entre Crassus (Jon Voight) e Wow Platinum é magistral, confirmando a esfuziante conjunção entre Dinheiro, Jornalismo e 'Sex Appeal'. E ainda que seus personagens não apareçam tanto em cena - ao menos, não tanto quanto o enredo solicita -, Jon Voight e Shia LaBeouf estão extraordinários, o que surpreende por uma questão extrafílmica: o primeiro destes atores é um apoiador contumaz do candidato à presidência Donald Trump, quando o roteiro do filme possui explícito apelo ideológico em contrário. Não apenas antitrumpista, mas antifascista em geral! 



Em seu acerto de contas político e audiovisual, quiçá um testamento, Francis Ford Coppola aproveita para dedicar esta obra tão íntima à sua recém-falecida esposa, Eleanor Coppola [1936-2024], reverenciada nos créditos finais, junto à menção do ano de produção em algarismos romanos: MMXXIV. As metáforas sobre os vícios romanos, deveras similares à configuração hodierna dos EUA, são exploradas de maneira inteligente, e os contrastes entre elementos antigos e contemporâneos é genial, como quando Vesta Sweetwater (Grace VanderWaal) entra em cena para leiloar a sua candura, supostamente adolescente, e um videoclipe 'pop' explode na tela. As emulações subjetivas do olhar alucinado de Cesar são fascinantes, contaminando toda a extensão da projeção, visto que esta confusão sensória surge como efeito colateral do elemento Megalon, que possui propriedades de controle do espaço e, principalmente, do tempo. Não é a obra-prima que acredita ser, mas é um filme que faz jus às maiores expectativas: um fuzuê de imagens, sons e delírios, que pode causar indigestão em alguns, mas deixa outros lambendo os beiços, ao término das duas horas e dezoito minutos de duração, para aproveitar a menção culinária do início. Dá para perceber a qual dos grupos o autor destas linhas pertence, não é?



Wesley Pereira de Castro. 

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

O QUARTO AO LADO (2024, de Pedro Almodóvar)


Como acontece nas melhores tramas almodovarianas, os filmes a que suas personagens assistem desempenham importantes funções metanarrativas. E, neste caso, são três, em seguida: a comédia "Sete Oportunidades" (1925, de Buster Keaton), no qual o protagonista é perseguido por diversas pretendentes matrimoniais; o melodrama "Carta de uma Desconhecida" (1948, de Max Ophüls), em que uma falha de comunicação impede o reencontro entre uma moribunda e o seu grande amor, que é hedonista; e o clássico "Os Vivos e os Mortos" (1987, de John Huston), baseado num conto de James Joyce [1882-1941], cujas frases derradeiras são recitadas pela personagem de Tilda Swinton, em mais de uma oportunidade, e que ecoam no desfecho do filme, de cariz sirkiano. As referências são tantas e tão requintadas que o próprio estilo de Pedro Almodóvar parece domesticado e envelhecido. O que é intencional, neste segundo caso, tal qual vem ocorrendo desde o semi-autobiográfico "Dor e Glória" (2019)... 


O tom de lamento crítico, evidente nos adjetivos suprautilizados, é uma percepção que advém da confluência de algo adotado pelo diretor, em seus médias-metragens anteriores, falados em inglês ["A Voz Humana" (2020) e "Estranha Forma de Vida" (2023  - resenhado aqui): ao abdicar de seu idioma pátrio, ele aceita um aburguesamento extremado, como se fosse um estadunidense típico, a ponto de render-se a 'flashbacks' indignos de sua sensualidade, caricatos na maneira como abordam a gravidez na adolescência e os traumas decorrentes da participação na guerra do Vietnã. Por conta disso, "O Quarto ao Lado" (2024) demora a engrenar, a despeito dos talentos das ótimas atrizes envolvidas no projeto. 


Na verdade, se Tilda Swinton, em sua segunda colaboração com o diretor, está maravilhosa em cada aparição da adoentada Martha, a afetação comportamental de Julianne Moore, como Ingrid, incomoda pela linha tênue na construção de sua personagem, que oscila entre a erudição e a futilidade. A seqüência em que ela fica ofegante ao praticar leves exercícios de locomoção, numa academia de ginástica, que o diga. Para contrastar, Damian, personagem de John Turturro, com quem ambas as amigas já tiveram um relacionamento amoroso, surge como uma voz racional, ainda que conscienciosamente culpada, ao diagnosticar a comunhão entre neoliberalismo e extrema-direita enquanto origem dos maiores problemas sociais hodiernos. Deve-se aderir a um inevitável pessimismo? 



O humor e o erotismo tentam se insurgir, nalguns momentos, mas sempre sob o viés da nostalgia: quando Damian comenta que, na juventude, "um dia sem sexo era um dia desperdiçado"; quando Martha diz que a guerra a deixou promíscua ou quando Ingrid afirma que "é preciso talento para lidar com o lixo". Os diálogos são bons, mas os exageros reativos de Ingrid à decisão suicida de sua amiga fazem com que nos questionemos acerca do que o diretor e roteirista achou de tão interessante em "O Que Você Está Enfrentando", da escritora estadunidense Sigrid Nunez, a fim de adaptá-lo. O segmento rememorativo sobre os padres espanhóis que transam em meio à guerra deixa entrever que, neste filme, estamos lidando com um auto-pasticho, em que um ponto de partida com algumas similaridades discursivas em relação ao que vimos no no excelente "Fale com Ela" (2002) descamba para um elogio classista que assume a transição do vermelho, tão abundante em suas obras de juventude, para o verde predominante nos ambientes chiques da alta burguesia nova-iorquina. Se ele quis homenagear a faceta dramática de Woody Allen, não conseguiu dotar de suficiente personalidade autoral este experimento imitativo: a trilha musical onipresente de Alberto Iglesias, bela e característica, chega a irritar, por exemplo! 



Wesley Pereira de Castro. 

domingo, 27 de outubro de 2024

Mostra SP 2024: NÃO NOS MOVERÃO (2024, de Pierre Saint-Martin Castellanos)


Quem conhece os detalhes históricos do Massacre de Tlatelolco, ocorrido em 02 de outubro de 1968, enquanto conseqüência trágica de protestos contra a realização dos Jogos Olímpicos na Cidade do México, associará, de imediato, o título deste filme a uma das canções entoadas pelos manifestantes, que é também cantarolada pela protagonista, no desfecho, depois que sua irmã Esperanza (Rebeca Manríquez) diz relembrar aquilo que era freqüentemente assobiado elo irmão de ambas, torturado e morto pelos militares. É um clímax emocional apaziguador, após quase cem minutos de ressentimentos convertidos em ações estouvadas... 


Socorro (Luísa Huertas) é uma advogada idosa, que segue traumatizada pelo evento supracitado. Cinqüenta anos se passaram, desde que seu irmão foi assassinado, mas, no dia do aniversário dele, ela desmaia e, ao receber documentos de um colega de profissão, que identifica o soldado que torturou seu querido parente, ela decide adotar a lógica questionável do "olho por olho", alegando que, em seu país, "a justiça é um privilégio apenas de quem possui muito dinheiro e poder". Para este intuito, ela conta com o apoio de um bandido reabilitado, Sidarta (José Alberto Patiño), a quem ela salvou de ser preso repetidas vezes. Por conta disso, ele é bastante devotado a ela, mas esforçar-se-á para dissuadi-la de suas intenções revanchistas. Não conseguindo, a auxiliará, mesmo a contragosto.



Filmado em preto-e-branco, este filme - que é o longa-metragem de estréia de seu diretor - possui uma direção de arte ostensivamente anacrônica no apartamento de Socorro, que utiliza máquinas de escrever, cartas enviadas pelo correio e telefones fixos, demonstrando o seu aprisionamento traumático em relação ao passado. Paralelamente à decisão da protagonista em vingar-se do algoz de seu irmão caçula, ela lida com uma rixa prolongada com Esperanza e encontra empatia em sua sua nora argentina Lucía (Agustina Quinci), que não apenas descobre que está grávida como também constata que seu relacionamento com Jorge (Pedro Hernández) minguou. O ritmo do filme é comedido e talvez funcione melhor para quem identifica prontamente as questões ditatoriais mexicanas, ecoadas nas argentinas, conforme relato de Lucía, em determinado diálogo. Nos leva a querer saber mais, ao passo em que nos emociona, quando percebemos o descontrole racional de Socorro, que chega a envenenar um gato, depois que este morde fatalmente o pombo que ela acolhe. O roteiro demora a ser desvendado, mas as interpretações são deveras aplaudíveis! 



Wesley Pereira de Castro. 

Mostra SP 2024: O VENTO SOPRA ATRAVÉS DOS TÚMULOS (2024 , de Travis Wilkerson)


Que o diretor deste filme-ensaio não seja croata é um dos componentes que engrandecem a sua proposta documental, no sentido de que ele descobre, junto ao espectador, algumas camadas horríficas daquilo que, sinopticamente, é descrito como um mero registro sobre os malogros de uma investigação policial. Após assumir a sua origem estadunidense (mais à frente, ele confessa que um de seus avôs pertenceu à Ku Klux Klan) e de enumerar dados pessoais e familiares (incluindo o elogio ao cachorro Yugo, nomeado em homenagem ao vento e a um país dissolvido), Travis Wilkerson apresenta-nos ao atraente detetive Ivan Peric, que entrou para a Polícia para não se tornar pescador, como o seu pai, não obstante querer ser dançarino de 'breakdance', na juventude. Ele investiga as mortes de diversos turistas em sua cidade natal - Split, na Croácia -, mas é hostilizado por seus colegas e por seu chefe, já que, ali, "ninguém gosta de turistas". Ao tentar descobrir como alguns deles morreram, traços sombrios da História do país são trazidos à tona... 



Por cada lugar que passa, Ivan encontra pichações e sinais de vandalismo urbano e, a partir daí, explica para o diretor o que são aqueles símbolos, e por que tantas suásticas são percebidas naquela região. A cidade de Split possui um time de futebol, Hajduk, cuja torcida é bastante violenta, confundindo as competições dentro dos estádios com o ódio que sente por outras etnias - principalmente, contra os sérvios. Como tal, os torcedores associam-se ideologicamente aos princípios de Ustasha, organização ultranacionalista croata que, entre outras medidas assustadoras, erigiu Jasenovac, o maior campo de concentração da Europa, dentre aqueles que não foram construídos pelos nazistas. Ali, milhares de sérvios, judeus e ciganos foram assassinados (geralmente utilizando a 'sbrosjek', que era uma faca apelidada de "exterminadora de sérvios"), de modo que a ojeriza nacional por estes grupos étnicos permanece ativa na população do país, que, ainda hoje, demonstra simpatia pela supracitada organização, externando-a através de um U maiúsculo com uma cruz no meio, geralmente disfarçado na palavra Radunica, que é uma importante rota local. 



O diretor explica todos estes detalhes de adesão fascista enquanto Ivan esforça-se para se desvencilhar da alcunha de 'uhljeb', que seria um burocrata preguiçoso, segundo uma tradução genérica. Esta é a maneira desdenhosa através da qual ele é atacado por seus pares, por insistir numa investigação boicotada pelos demais profissionais, de cuja ajuda o detetive necessita. Em determinado momento, Travis Wilkerson aproveita a menção de Ivan a um acidente sofrido por uma croata bêbado, quando tentava destruir a estátua de Rade Koncar [1911-1942], para esclarecer quem foi este importante partisano (membro de uma tropa irregular que se opõe ao controle estrangeiro de uma determinada área) iugoslavo e para interrogar "como um homem se torna uma estátua?". É quando percebemos que o título poético do filme faz menção à canção "The Partisan", de Leonard Cohen [1934-2016], cuja letra fala justamente sobre a ocupação nazista nalguns países. Na maior parte do filme, sua fotografia é em preto-e-branco, exceto quando pinceladas vermelhas que lembram sangue surgem na tela, ao som de fogos de artifício, após a tentativa frustrada do realizador de animar uma gravura com a bandeira de Ustasha. Trata-se de mais um instante de genialidade, possibilitado pelo Acaso (os demais seriam o segmento "História da Queda da Iugoslávia Através dos Grafites de Split" e a lembrança da comemoração de aniversário dos seis anos de Ivan, em que, num jogo de futebol, ele testemunhou o que seria uma das primeiras etapas do esfacelamento definitivo da antiga Iugoslávia), que irmana este filme em relação aos trabalhos mais iconoclastas do romeno Radu Jude. Dolorosamente magistral! 



Wesley Pereira de Castro. 

sábado, 26 de outubro de 2024

Mostra SP 2024: EM RETIRO (2024, de Maisam Ali)


Por causa da predominância do cinema de Bombaim - conhecido internacionalmente como Bollywood -, eventualmente esquecemos que as largas dimensões nacionais da Índia engendram diferentes manifestações culturais, a depender da região: na parte setentrional, fronteiriça com o Tibete, encontramos Ladakh, onde foi filmado este filme. De tradição budista, este local, de caráter político-administrativo semiautônomo, serve aos interesses reflexivos do diretor estreante Maisam Ali, que narra as tentativas de reinserção familiar de um homem que volta para onde cresceu, depois de faltar ao funeral de seu irmão... 



Interpretado por Harish Khanna, este homem está ausente há tanto tempo que não consegue sequer falar adequadamente o dialeto da região. Conversa, via Facebook, com um sobrinho que não conhecia, e vê-se diante de conflitos urbanos, entre jovens que brigam, depois que um deles tenta assaltar outro. Não é um enredo fácil de compreender, visto que as relações entre os personagens são balizadas pela mesma sensação de estranhamento e não pertencimento que atravessa o protagonista. Para piorar, quase todas as seqüências são filmadas à noite, de modo que percebemos muito mais do que efetivamente vemos as situações. 



A despeito de seu extremo hermetismo, "Em Retiro" é um filme que justifica o título na própria maneira com que justapõe as cenas, visto que precisamos redimensionar a maneira como nos orientamos narrativamente, através das convenções tradicionais do gênero dramático: sabemos que uma jovem faz desenhos, no interior de sua residência, enquanto ouve uma canção da Billie Eilish ("When the Party's Over"); sabemos que o protagonista se delicia ao tomar uma sopa num estabelecimento local; sabemos que os adolescentes daquele contexto bebem e fumam, como acontece em qualquer outra parte do mundo. Porém, não identificamos adequadamente como os coadjuvantes se relacionam entre si, e em que sentido eles afetam emocionalmente o inominado protagonista. Ao final, a paisagem em movimento que se nota através da janela de um ônibus assume uma velocidade extremamente lenta, metonimizando a deambulação quase fantasmática do protagonista acerca dos lugares por onde passou, durante a breve visita à sua cidade-natal. Ele seguirá vagando depois disso, tanto quanto a nossa tentativa de entender aquilo a que assistimos... É um filme bonito, entretanto!



Wesley Pereira de Castro. 

Mostra SP 2024: OS MAUS PATRIOTAS (2024, de Victor Fraga)


Avançando em sua proposta de finalizar uma trilogia documental sobre manipulação midiática - depois de realizar o interessante "A Fantástica Fábrica de Golpes" (2022, co-dirigido por Valnei Nunes - comentado aqui) -, o diretor baiano Victor Fraga, radicado em Londres, entrevista duas importantes personalidades britânicas, comumente criticadas por sua simpatia ao socialismo e pelas críticas ao imperialismo monárquico: o cineasta Ken Loach, duas vezes ganhador da Palma de Ouro no Festival Internacional de Cinema de Cannes, e o parlamentar Jeremy Corbyn, que foi líder do Partido Trabalhista entre 2015 e 2020. Segundo a narração, o próprio Ken Loach já teve a intenção de realizar algo protagonizado por Jeremy Corbyn, mas esta é a primeira vez em que eles são filmados juntos... 


Na curta duração do filme (cerca de uma hora e setenta minutos), o documentarista senta-se diante de seus dois entrevistados, e eles conversam sobre o modo hostil com que são geralmente definidos nos meios de comunicação de massa locais. Algumas imagens de longas-metragens loachianos servem como ilustrações das falas de ambos, confirmando algo que o veterano realizador diz: "a divergência de opiniões é mais tolerada na ficção porque é ficção". Ao que Jeremy Corbyn complementa, elogiando-o bastante, referendando que o cineasta é assaz modesto ao falar sobre as suas necessárias provocações cinematográficas, sendo que algumas de suas obras foram censuradas internamente, já que "a mídia britânica é hostil a mudanças radicais no 'status quo'". Enquanto ouve, Victor Braga reage com expressões de estupefação e, obviamente, faz alguns comentários sobre a política brasileira, com destaque para o 'impeachment' sofrido por Dilma Rousseff e para a prisão injusta de Luiz Inácio Lula da Silva, sobremaneira conhecidos por Jeremy Corbyn. Mas o melhor momento de intervenção é quando ele pergunta a Ken Loach se "um cineasta socialista pode não ser realista?"!



Validando a entrevista, declarações encolerizadas de jornalistas vinculados à direita política são animadas através de pequenas vinhetas, nas quais ouvimos que "Leni Riefenstahl era mais sutil [em seu propagandismo] que Ken Loach" ou que seus filmes nem precisam ser vistos, "da mesma forma que não é necessário ler 'Minha Luta' para saber que Adolf Hitler é um monstro". O que confirma uma opinião progressista compartilhada por ambos os entrevistados: "o que seria de uma sociedade democrática em que não se tem acesso aos eventos, mas apenas a interpretações sobre os eventos?". Como tanto o cineasta quanto o parlamentar são eventualmente tachados de antissemitas, por serem favoráveis à causa palestina, Victor Fraga aproveita esta deixa para comentar a diferença de tratamento concedida à Rússia e a Israel. Em razão de a entrevista em pauta ter ocorrido antes do ataque da organização Hamas, em outubro de 2023, questões essenciais do debate são continuadas após a sessão, naquilo que ele incita. Vale acrescentar que o documentário, mesmo elementar em seus apanágios (o diretor tenta dinamizar o ritmo fílmico inserindo efeitos visuais durante os bastidores, como quando Jeremy Corbyn pede água ou quando Ken Loach recusa maquiagem), é deveras assertivo em seu discurso midiático-denuncista. Que venha a terceira parte da trilogia, com a participação do lingüista Noam Chomsky!  




Wesley Pereira de Castro. 

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Mostra SP 2024: ÁRVORES QUE EU ME LEMBRO (2024, de Erhan Tuncer)


Por não ser um diretor estreante, chama negativamente a atenção, neste drama turco, a frouxidão com que a câmera é segurada em seqüências em não há muita movimentação, como no instante em que Bahar (Hande Dogandemir) e Mahir (Erdem Kaynarca) conversam durante um piquenique, servindo-se da comunicação através da linguagem de sinais: se algo muito interessante ocorre diante da tela, o excesso de tremeliques no enquadramento prejudica a imersão do espectador, num filme que também padece do excesso de pretensões roteirísticas... 


Demoramos a perceber que a narrativa é contada de trás para a frente, e este efeito possui uma intenção definida, no modo chocante como é revelado, afinal, o porquê da desoladora insatisfação de Bahar em relação à gravidez que carrega. O desfecho é impactante na exposição de uma disfunção familiar amplamente anunciada, que impregna todos os personagens, levando-os a mencionar a possibilidade de suicídio em mais de uma oportunidade: Bahar, por causa dos traumas relacionados aos "muros" afetivos erigidos por seu pai, que não aceitava que ela tivesse escolhido cursar Comunicação Social na universidade; Mahir, pela condição de paraplégico, decorrente de um desentendimento entre amigos, após uma manifestação política; e Cemal (Istar Gökseven), pelas dificuldades no trato afetivo com seu filho, que reage com rispidez ao seu zelo protetoral. 


Outro problema que denuncia a imaturidade estilística do realizador Erhan Tuncer é a construção dramatúrgica dos diálogos: as conversas entre os personagens são longas e demarcadas pelas sofridas lembranças de infância e/ou juventude, mas o arremedo bergmaniano não faz jus à referência célebre, pois, até que consigamos redefinir as noções de causa e conseqüência, invertidas na montagem alinear, a animosidade externada pelo trio central soa um tanto forçada. Os instantes que justificam o título poético são graciosos  e os atores são competentes, mas a lentidão rítmica e os caprichos directivos nos distanciam da pujança emocional intentada. É um filme que talvez funcione melhor numa revisão, ciente da lenta concatenação de ressentimentos mnemônicos. Eis o desafio!


Wesley Pereira de Castro. 

quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Mostra SP 2024: O TRATOR (2024, de Ramesh Yanthra)


O fato de o diretor Ramesh Yanthra ser proveniente dos documentários faz com que ele dedique parte considerável da metragem de sua estréia ficcional à abordagem descritiva do cotidiano de Muthu (Prabhakaran Jayaraman) e seus parentes: como o enredo condiz com a época do Pongal - festival que ocorre no Sul da Índia, no início de cada ano, no qual, por quatro dias, as pessoas fazem oferendas aos deuses familiares - , esta cerimônia é mostrada duas vezes, em dois anos consecutivos. Numa delas, há fartura, decorrente do labor rural; na outra, a miséria induzida pela credulidade do protagonista em relação a uma empresa fraudulenta, que promete-lhe um trator enquanto prêmio, após o pagamento vultoso de algo similar a um consórcio. Entre uma e outra situação, a vida, que persiste. 



Se o cineasta é mui exitoso na reprodução dos rituais religiosos, nas idas de Muthu à feira, nas suas atividades enquanto agricultor e na maneira afetiva como ele se relaciona com a esposa, com o filho, com a mãe e com o sogro, há também espaço, no realismo da proposta cinematográfica, para uma cena de sonho (que metonimiza a extrema ansiedade do protagonista quanto ao recebimento de seu prêmio - afinal, enganoso), para uma contundente denúncia contra a invasão das tecnologias ocidentais e fraudes multinacionais (a mãe de Muthu reclama que, desde que seu filho comprou um telefone celular, coisas ruis começaram a acontecer) e para canções que sintetizam os eventos ocorridos, na plangente voz da mãe de Muthu, interpretada por Pillaiyarpatti Jayalakshmi. 


Aceitando o viés dramático, mas evitando o sensacionalismo caro a produções que abordam o malogro de indivíduos através do registro progressivamente sádico, este realizador demonstra um carinho legítimo por seu personagem principal, ficando ao seu lado até o derradeiro momento, quando a mudança de protagonismo para a esposa Selvi (Sweetha Pradhap) - que passa a conduzir o trator, a contragosto - desencadeia mais uma canção por parte da senhora idosa, entoada entre o lamento e a valorização dos esforços de sua nora. O modo persistente como o toque do aparelho telefônico de Muthu invade a banda sonora, nas diversas vezes em que os funcionários do banco cobram as prestações atrasadas, é magistralmente associado à corrosão emocional embutida naqueles acordes eletrônicos, que ressurgem nos créditos finais. Temos, aqui, uma grata surpresa indiana hodierna! 



Wesley Pereira de Castro. 

Mostra SP 2024: O CHEIRO DO LEITE QUEIMADO (2024, de Justine Bauer)


O fato de ser narrado por uma adolescente permite a este filme uma ambivalência que, ainda que não o redima por completo, problematiza aquilo que incomoda as parcelas do público que não se identificaram com os dilemas compartilhados: se, por um lado, acompanhamos os anseios púberes de garotas que, tal como ocorreu com suas mães e avós, precisam dedicar a maior parte de seus dias às tarefas rurais, por outro, verificamos também a exposição das conseqüências drásticas da especulação financeira nos destinos de pequenos agricultores e pecuaristas. Neste sentido, a seqüência que explica o título é particularmente atordoante, tanto pelo que acontece em seguida (o suicídio de um fazendeiro) quanto pelo próprio desperdício de leite, que não causa a comoção midiática pretendida.


A ausência dos familiares masculinos da protagonista talvez seja explicada pela necessidade de eles trabalharem nas áreas fabris da Alemanha. Resta àquelas mulheres tarefas árduas e intermináveis, como juntar feno, castrar ruminantes e afogar ou espancar os gatinhos recém-nascidos. A constatação de uma reflexão social subjacente a todos estes procedimentos não abole a má impressão direcionada às jovens personagens, visto que a maneira pragmática com que elas tratam os animais provoca desconforto. Vide o instante em que é dito que "depois que o touro foi castrado, ele cresceu bastante e, assim, pôde trabalhar mais"...


As atrizes são simpáticas, mas as situações em que elas se envolvem são regidas por convenções dramáticas muito específicas daquela conjuntura regional: a dúvida de uma das adolescentes quanto à manutenção de uma gravidez, por exemplo, não chega a desencadear um conflito evidente (ao perceber que a sua filha está grávida, a proprietária da fazenda apenas pergunta: "quer dizer que eu serei avó?"), não obstante converter-se na cena que encerra o filme, abruptamente interrompida. O ritmo narrativo é conduzido de maneira monocórdica, mesmo diante de situações impactantes, como o supracitado suicídio ou o momento em que um homem banha-se completamente despido no córrego onde as garotas decidem nadar. Terminada a sessão, as questões sociológicas se sobressaem ao enfado provocado pelos diálogos truncados pela indecisão entre o realismo campestre e o arremedo juvenil de um existencialismo essencialmente feminino. As boas intenções, neste caso, são insuficientes para validar a nossa apreciação!


Wesley Pereira de Castro. 

terça-feira, 22 de outubro de 2024

Mostra SP 2024: DON GOYO (2023, de Jorge Flores Velasco)


Apesar de ser o personagem-título deste filme e da novela homônima - publicada em 1933, por Demetrio Aguillera Malta [1909-1981] -, Don Goyo (Carlos Chiriboga) aparece pouco. Ele é sobremaneira mencionado - e inicialmente temido -, mas a verdadeira protagonista do filme é Cusumbo (Jenifer Carabalí), uma cortadora de cana-de-açúcar que, após a constatação de diversas injustiças, migra para Guayaquil, onde espera experimentar não apenas a própria liberdade como incitar o sentimento de libertação entre aqueles que, como ela, vêm sendo explorados há gerações... 


Permeado pelo realismo fantástico, este drama equatoriano tem aparência épica, mas a sua realização é contrastante: seja por conta da curta duração (pouco mais de uma hora e dez minutos), seja pela utilização excessiva de telas pretas, em seqüências narrativamente impactantes ou para demarcar a passagem de tempo entre as situações. Estes dois aspectos diluem a força da trama, que possui uma contradição elementar na composição da protagonista, atravessada pelas anuências do machismo estrutural. Afinal, ela opta por ficar ao lado de seu pai, depois que este espanca a sua mãe até a morte, durante uma reação colérica atiçada pelo alcoolismo, ou quando, ao flagrar seu amante e sua patroa em conluio sexual, ela sente mais raiva dela que dele, assassinando a ambos. 


A abertura do filme é promissora, ao fazer com que o mito de Don Goyo, um negro ancestral que é "pai dos nascidos no mangue", seja contada por um "coronel" local, que, obviamente, descreve a entidade decolonial como alguém possuído pelo Diabo, como um fantasma temível. É quando somos apresentados à jovem Cusumbo, que, alegando não saber dançar, apaixona-se pelo impetuoso Nico (Enrique Guzmán), que deseja fazer sexo com ela "da mesma maneira que as vacas se entregam para os bois". A moça consente, e esta submissão inicial é problematizada no desfecho, depois do encontro com Don Goyo, ainda que o roteiro, escrito pelo próprio diretor, não disponha de suficiente tempo para tornar a personagem tão memorável quanto ela poderia ser, enquanto esboço reivindicativo do proletariado e/ou liderança feminista. Seja como for, trata-se de uma obra bem fotografada, que utiliza as imagens florestais de maneira imponente. O que atrapalha é a montagem apressada. Mas vale a pena buscarmos o livro original, que tal?



Wesley Pereira de Castro. 

Mostra SP 2024: O VAQUEIRO (2024, de Emma Rozanski)


Num diálogo circunstancial, porém mui elucidativo acerca das intenções discursivas desta produção, Bernícia (Natalia Cortés Rocha) comenta com sua tia e sua irmã que decepcionou-se um pouco com o faroeste antigo que acabaram de ver. O motivo: segundo ela, havia muitas cenas de ação, e preferia que os personagens apenas cavalgassem e observassem a paisagem. Suas interlocutoras comentam que, sem os tiroteios, o filme ficaria monótono, ninguém gostaria de assisti-lo. Ao que a protagonista retruca: "quem gosta de meditar, gostaria, sim". Para ela, isto representa a descoberta de um reconhecimento identitário, que confunde-se com o próprio filme que estamos vendo, na placidez com que a trama se desenrola... 



As situações acontecem de maneira corriqueira: enquanto trabalha num restaurante que fica num parque florestal onde turistas costumam fazer trilhas, Bernícia percebe uma égua perdida na vizinhança. Ela não tem lembranças de já ter montado num cavalo antes, mas passa a ficar obcecada pelo animal, chegando mesmo a dormir no rancho em que o eqüino vive deixando as suas parentas preocupadas, já que ela não possui sequer um telefone celular para enviar mensagens. A partir daquele momento, esta personagem não apenas sentirá que "está aqui" no mundo, mas escolherá para si mesma uma personalidade, para a qual busca inspiração em filmes antigos - no caso, obras da década de 1930, dirigidas por Robert N. Bradbury [1886-1949], que estão sob domínio público. 


Conduzido com extrema simpatia pela diretora, este filme apresenta um carinhoso panorama sobre a vida no interior de uma cidade colombiana, em que as notícias violentas associadas ao país estão distantes. Bernícia ressignifica a sua própria solidão, ao encontrar a vestimenta de vaqueiro que começará a utilizar em tempo quase integral. Sua irmã Edita (Paola Abril) a apoia integralmente, mas a decisão dela por dedicar mais tempo para si mesma instaurará alguns conflitos, no sentido de que ela era enxergada apenas como um arrimo familiar, como a babá de seus sobrinhos. Neste sentido, o filme cativa-nos pelo modo como valoriza o sutil empoderamento de uma mulher sem muitas perspectivas, que se reconhece capaz de cuidar de um rancho e até mesmo de fazer amizades, como ocorre com o mochileiro Tobi (Lennart Hermanns), que passa uma noite consigo, bebendo uísque e aguardente. Um enredo deveras simpático sobre autodescoberta, portanto!



Wesley Pereira de Castro. 

PERMANÊNCIA EM LUGAR NENHUM (2024, de Tsai Ming-Liang)

O breve plano do sol em meio às nuvens, num céu azulado, na abertura deste filme, assume o flerte com o cinema estrutural, ainda que as intenções do diretor taiwanês Tsai Ming-Liang, nesta radical série de filmes protagonizados por um monge que caminha de forma extremamente lenta (vivido por seu colaborador habitual Lee Kang-Sheng), são bem específicas. Tão particulares que permanecem herméticas ao desfecho da sessão: se, antes, o diretor abordava a incomunicabilidade entre os indivíduos, na solidão das metrópoles asiáticas, agora ele adere à completa falta de diálogos, em que duas figuras humanas são flagradas passeando por diferentes paisagens estadunidenses, sem nunca se encontrarem... 


Um destes dois homens, conforme já anunciado, é o monge que cobre-se com uma manta vermelha mui perceptível, e que caminha numa velocidade que requer uma intensa capacidade de concentração. Suas aparições originam composições fotográficas fascinantes, como aquela em que ele passa por diante das letras compostas por arco-íris psicodélicos, pintadas nos portões fechados de algum estabelecimento, e que formam  a palavra "LOVE" ("amor"). Noutros momentos, há curiosas intervenções do acaso, como quando uma pessoa com dificuldades de locomoção caminha ainda mais rápido que ele, ou quando, no meio de uma estação ferroviária, um transeunte, paralisado por algum tempo no cenário, chama a nossa atenção ocular, competindo com o protagonista inominado e silencioso. As seqüências em calçadas também são bastante interessantes, por conta do modo como as pessoas encaram o monge, que, em sua lentidão, atrapalha o tráfego delas.


O outro homem é interpretado por Anong Houngheuangsy, que já participara de um episódio anterior deste projeto ["Where" (2022)]. Aqui, ele deambula por templos religiosos - num deles, curiosamente, a palavra "heart" ("coração") está sintomaticamente dividida como "he/art" ("ele/arte"), quiçá metonimizando a vinculação desta obra à tônica da instalação artística -, por museus de artefatos asiáticos e por hotéis, onde, num quarto, cozinha a sua própria comida, algo recorrente na filmografia ming-lianguiana. Não há trilha musical (exceto pela canção que é executada para prenunciar o desfecho do filme) nem qualquer mote tramático: vemos apenas dois homens que andam pelos ambientes norte-americanos - entre eles, o famoso Lincoln Memorial. Tudo indica que este monge regressará em capítulos vindouros da cinessérie 'Walker'. Enquanto isso, agradamo-nos ritmicamente por aquilo que é mostrado nos filmes, mas sentimos falta das reflexões relacionais de outrora, conforme ocorreu no excelente "Dias" (2020), protagonizado pela mesma dupla de intérpretes do longa-metragem ora analisado. Tsai Ming-Liang segue absolutamente autoral em seu percurso directivo, eis uma certeza!



Wesley Pereira de Castro. 

domingo, 20 de outubro de 2024

A SUBSTÂNCIA (2024, de Coralie Fargeat)



Quando este filme foi lançado, diversos críticos adiantaram-se em elencar as produções que são utilizadas como referências visuais pela diretora, como se, mais que uma experiência (óbvia) de reflexão sobre as nossas vaidades e vícios, a obra fosse um desafio mnemônico, um dever de casa sobre o consumo cinematográfico em viés quantitativo. Entretanto, uma das referências mais importantes ocorre na esfera auditiiva, que é quando, num dos instantes que antecedem o acachapante desfecho, reconhecemos a trilha musical de "Um Corpo que Cai" (1958, de Alfred Hitchcock) na banda sonora: enquanto Monstroelizasue está colando a foto de Elizabeth Sparkle (Demi Moore) em seu rosto desfigurado e inserindo brincos nas orelhas deformadas, os acordes de "The Nightmare and Dawn", de Bernard Herrmann, parecem trazer consigo uma importante mensagem subliminar, a de que não se pode ser feliz fingindo que é outra pessoa...




Bastante sintomático em relação à época em que foi produzido, "A Substância" (2024, de Coralie Fargeat) investe bastante no visual, mas depende de nossa suspensão de descrença para ignorar o fato de não se sabe nada sobre as relações pessoais e/ou familiares de Elizabeth. É como se, ao se tornar uma grande estrela de Hollywood - afinal, envelhecida e pouco lembrada -, ela tivesse cortado os laços íntimos com todas as pessoas, o que não parece de todo congruente, visto que o modo como ela trata o colegas de trabalho e os transeuntes não se coaduna à arrogância que logo notamos em Sue (Margaret Qualley).



Insistir no delineamento psicológico das personagens seria um estratagema analítico que vai de encontro à proposta discursiva do enredo: reiterar, da maneira mais explícita possível, que a sociedade hodierna (sobretudo, em seus meandros midiáticos) é condizente com o machismo estrutural e que o excesso de prazer interfere no caráter dos indivíduos. Trata-se de uma lógica redundante, mas apresentada como novidade, em razão de o filme, na sua costura de menções a outros filmes, apresentar-se como uma mutação que não aceita suficientemente a si mesma, dependendo de outras mutações para ser validada. É muito mais um evento cinematográfico que um trabalho com a mesma solidez ideológica das obras que reverencia. Um feminismo de butique, por vezes, ainda que não indigno de interesse. 



Dentre os defeitos do filme, o pior deles é a maneira estereotipada com que os personagens masculinos são apresentados, sendo particularmente execráveis as aparições de um enfeado e histriônico Dennis Quaid. Outros enumeráveis seriam a previsibilidade do roteiro - compreensível em seu pendor fabular invertido -, a disponibilidade telefônica perene dos responsáveis pela comercialização da Substância e a montagem epiléptica. Mas este último aspecto é compensado pela esperteza combinatória dos demais elementos técnicos, sendo a fotografia de Benjamim Kracun e a trilha musical de Raffertie muito boas, em seu direcionamento alucinógeno. É um filme que merece ser encarado como um apanágio de seu tempo e que, por conta disso, confunde-se com o que pretende denunciar. Porém, ele merece aplausos pelo resgate actancial de Demi Moore, que está excelente em cada aparição, sendo obrigada a demonstrar-se envelhecida, quando ainda está muito bonita e expressiva - e capaz de adaptar-se magistralmente à contemporaneidade. Que ela esteja longe de sofrer o mesmo destino explosivo que a sua personagem! 




Wesley Pereira de Castro. 

RECEBA! (2021, de Pedro Perazzo & Rodrigo Luna)


É oportuno que um dos títulos satíricos lidos nos cartazes pornográficos que emolduram as paredes do local em que Amadeu (Daniel Farias) vai procurar trabalho seja "Onde as Pregas Não Têm Vez", no sentido de que, tal qual acontece nos filmes dos irmãos Ethan & Joel Coen, um cabedal de erros atrapalha os planos dos personagens. Aliás, não se sabe qual a razão da dívida que atormenta este aparente protagonista - nem o porquê das feridas em seu corpo -, mas ele resolve piorar ainda mais a sua situação, quando encontra uma bolsa, contendo alguns quilos de cocaína, junto a seus contratadores, que estão mortos. E o que ele faz? Pega a sacola e tenta vender o seu conteúdo. Como um típico personagem coeniano assim o faria... 



Não demora a percebermos que o plano de Amadeu dará errado e, quando isso de fato ocorre, há uma surpreendente mudança de perspectiva: após um 'fade-out', volta-se no tempo e acompanhamos a busca por esta bolsa através do prisma de outros personagens. Da mesma maneira que caracteriza os trabalhos iniciais de cineastas como Quentin Tarantino ou Guy Ritchie, a narrativa é contada de maneira alinear, complementando-se à medida que outros personagens assumem a posição provisória de protagonistas, até que surja a reviravolta definitiva: será que algum deles consegue ficar com o dinheiro?



Baseado no romance "A Guerra dos Bastardos", publicado em 2007, pela carioca Ana Paula Maia, o roteiro deste filme, escrito pelo co-diretor Pedro Perazzo, translada o enredo para a Bahia e é hábil em seu poder de síntese, evitando contextualizar em excesso o delineamento dos personagens, a fim de que o espectador não se desvie da ação e perceba eventuais furos tramáticos. Ao invés disso, basta saber que Amadeu é romanticamente envolvido com Gina (Edvana Carvalho), que também trabalhara com pornografia, no passado. Graças a ela, ele conheceu o vilanaz Pastor (Narcival Rubens), que, não por acaso, é o dono da cocaína roubada. No afã por recuperá-la, ele designa dois de seus mais violentos capangas para encontrarem Amadeu: Lica (Evelin Buchegguer) e Edgar (Jackson Costa), que é apaixonado por Gina. Quando Edgar visualiza Gina na residência de Pastor, este insinua que "uma vez puta, sempre puta", o que desperta a sua ira. Obediente ao patrão, ele reencontra a amada - que o detesta -, num quarto alugado pelo pintor Horácio (Leandro Villa), que e envolvido de supetão nesta tramóia entrecruzada. Mas o sumiço de Amadeu - e da bolsa que ele carregava, após a cocaína ser vendida por Guilherme (Vinicius Bustani) - reconfigura todas as relações... 


Repleto de convenções do gênero policial - que são de caráter hollywoodiano, mas adequadamente redirecionadas para a conjuntura baiana, conforme percebemos na gíria local que intitula a obra -, "Receba!" mantém o espectador continuamente envolvido, querendo saber qual equívoco será instaurado em seguida, já que os planos dos envolvidos, nesta saga de ambição, dão errado. Os apreciadores das filmografias dos cineastas anteriormente citados quedarão fascinados pela brasilidade inequívoca deste enredo, que é lançado alguns anos após a sua pós-produção, mas numa coincidência em relação ao momento em que as conseqüências públicas do crime organizado em Salvador passaram a ser nacionalmente conhecidas, graças aos telejornais. É uma triste coincidência, mas que valida a verossimilhança das ocorrências criminais, ainda que se possa reclamar eventualmente dos cacoetes de alguns dos bandidos (na cena em que Pastor recontrata Gina, por exemplo). 


A despeito de quaisquer problemas (a ausência de sangue na cena em que um personagem baleado encosta na parede; a celeridade com que Horácio arruma o seu quarto e resolve novamente alugá-lo, depois do atropelamento de Amadeu; a conveniência do desfecho), "Receba!" demonstra-se um agradável exemplar brasileiro do gênero fílmico que homenageia. A trilha musical de Andrea Martins e Ronei Jorge (com canções originais compostas por Raffa Muñoz) é ótima e a utilização de "Virá", na voz da compositora Josyara (em colaboração com Giovani Cidreira), durante os créditos finais, é algo particularmente acertado, de modo que o verso mais repetido ("eu sou você cuspindo fogo/ Latino-América"!) tem tudo a ver com a definição direcionada pelos realizadores ao próprio filme: "um 'noir' de dia, meio esculhambado". E, por tudo isso, muito bom! 


Wesley Pereira de Castro.