Num contexto em que as advertências oníricas são muito mais respeitadas que a Ciência, Lise é hostilizada por querer estudar, ainda que este anseio tenha provindo de sua mãe (Ida Cæcilie Rasmussen), que está grávida mais uma vez. Elas vivem numa comunidade rural, e os trabalhos destinados às mulheres parecem inextinguíveis. Como é a mais velha das crianças - já uma adolescente, em verdade - cabe a ela a responsabilidade de cuidar dos irmãos menores. Porém, ela começa a experimentar desejos íntimos: sente-se atraída por um rapaz criado por sua família e percebe gradualmente que as negociações com Deus, realizadas através das orações passadas de geração em geração para a sua família, são vãs: "Pai nosso que estás no Céu, (...) seja feita a Tua vontade"...
Por motivos óbvios, pensamos na filmografia de Carl Theodor Dreyer [1889-1968] durante a sessão, sobretudo em sua obra-prima "A Palavra" (1955), mas num viés que ressignifica os temores e tremores kierkegaardianos: o ritmo aqui é bem mais frenético, os gritos de dor são bem mais agudos, e os milagres são tolhidos pela realidade implacável das tarefas campesinas. A despeito disso, Lise e sua infinidade de irmãos e primos brincam avidamente, em seqüências abrilhantadas pelo uso magistral da câmera na mão. Conscientes dos males iminentes, as crianças tentam inverter a malevolência do que as circunda, imaginando até mesmo "as coisas boas que se seguem após a morte da mãe". Entretanto, é a impavidez das senhoras mal-humoradas que instala-se como regra: ao perceber que sua avó não está chorando, Lise pergunta o porquê. Ela responde sem titubear: "depois que se enterra mãe, pai, marido e dez filhos, não há mais lágrimas a verter". O que surge como consolo num contexto religioso como este?
Wesley Pereira de Castro.
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