segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Mostra SP 2021: EU VEJO VOCÊ EM TODOS OS LUGARES (2021, de Bence Fliegauf)


Dando continuidade a um experimento que o próprio diretor havia realizado em 2003, este segundo exercício dramatúrgico envolvendo tramas tipicamente budapestenses impressiona pelo modo como são urdidas situações que aparentemente não possuem nenhuma conexão entre si, exceto pelo ambiente citadino: os personagens, em sua grande maioria, são aquisitivamente favorecidos e, mesmo encolerizados, retraem o tom de voz, falam baixo, ainda que não escondam o rancor. Isso é sobremaneira perceptível no primeiro dos diálogos, em que a jovem interpretada por Lilla Kizlinger apresenta um relatório de culpabilidade para o seu pai, responsabilizando-o pelo acidente automobilístico que matou a mãe dela e provocou a amputação da perna de uma jovem desconhecida. A longa seqüência é caracterizada por muitos planos e contraplanos, geralmente fora do eixo. Os 'close-ups' nas mãos são comuns, e serão reiterados ao longo das seis estórias restantes... 


Adotando uma tensão monocórdia entre os personagens - inclusive no segmento que envolve uma bruta aproximação sexual entre um usuário de cocaína (Péter Fancsikai) e a esposa de seu pai moribundo, que é interpretado pelo músico habitual dos filmes de Béla Tarr, Mihály Víg -, o diretor surpreende-nos com os estrondos vocais que ocorrem na quinta seção, em que um garoto ateu (vivido pelo filho do diretor, János Fliegauf) é confrontado por sua mãe fanaticamente cristã quando ele pede para dormir na casa de um amigo, onde pretendia participar de um jogo de representação. A mãe não aceita que o garoto demonstre interesse por seres mitológicos e fantásticos, ao que o menino rebate com um argumento genial: "Deus é um assassino tão sanguinário quanto Adolf Hitler ou Mao Tsé-Tung. A diferença é que ele não existe"!


Dentre os episódios dramáticos, o segundo (sobre uma mulher ciumenta que não aceita que seu namorado visite uma ex-amante) e o terceiro (sobre um casal que não consegue superar a falta de filhos) são os menos inspirados, no sentido de que perpetuam um tipo de contenda prioritariamente vinculado aos ressentimentos pequeno-burgueses, mas, daí por diante, o filme prossegue num crescendo de emoções, culminando no flagrante de um homicídio contratual por uma criança e na abertura de uma porta, onde o sobejo de luz que invade o ambiente propõe uma reconciliação benfazeja entre pessoas de diferentes gerações, antecipando a versão 'indie' de uma canção da banda The Cure que é executada nos créditos finais. O estranhamento intenso que o filme causa ao longo de sua duração é gradualmente sedimentado nas memórias espectatoriais, de modo que o subtítulo passa a fazer pleno sentido: como esquecer aquelas pessoas amarguradas depois de tudo o que testemunhamos?!


Wesley Pereira de Castro. 

 

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