quinta-feira, 21 de outubro de 2021

Mostra SP 2021: SR. BACHMANN E SEUS ALUNOS (2021, de Maria Speth)


Durante a audiência, uma dúvida elementar chama a atenção do espectador: como foi o processo de filmagem? Em razão de não haver nenhuma seqüência no documentário que mencione a presença de uma equipe cinematográfica no interior da sala de aula, convém pesquisar entrevistas com a diretora, a fim de compreender as circunstâncias em que, ao longo de seis meses, em 2017, ela conseguiu montar registros tão fascinantes de educação não-bancária, a partir do exemplo mui peculiar do quase aposentado Dieter Bachmann, que insere diversas atividades recreativas em meio às aulas de Matemática, Inglês ou Alemão. Responsável pelos filhos de imigrantes na sexta série de uma escola pública numa cidade fabril do interior da Alemanha, este professor precisa lidar com as diferenças identificáveis entre as culturas búlgara, turca, marroquina, russa e italiana (para ficar em apenas cinco das explicitamente citadas) e integrá-las equanimemente num projeto de sociedade em que os pontos humanistas em comum são muito mais valorizados que as notas constantes nos boletins finais. "Para mim, as avaliações dão-nos apenas uma imagem imediata", diz ele. O que interessa é que os alunos "permaneçam fiéis a si mesmos" enquanto amadurecem...



Não obstante ser definido pelo pai de uma das alunas como "um professor muito bom e afetivo", o senhor Bachmann evita o pieguismo no tratamento com os pré-adolescentes: trata-os da maneira mais igualitária possível, a despeito das distinções comportamentais mui evidentes, como a muçulmana Ferhan, que freqüentemente sente-se ofendida pelas falas de seus colegas e "retrai-se como um caracol", ou o hiperativo Cengiz, costumeiramente repreendido por não prestar atenção às aulas, ainda que demonstre ser um marceneiro mui talentoso. Alguns dos garotos convertem-se em protagonistas natos, pelo modo mui carismático como se comportam na apresentação de suas atividades, com destaque para a espirituosa Steffi, para o terno Mattia e para o garoto búlgaro Hasan, que deseja ser boxeador mas é também um perito músico. Em suas aulas, Dieter Bachmann costuma executar clássicos do 'rock'n'roll' como "Smoke on the Water", "Knocking on Heaven's Door" e "Jolene", além de canções folclóricas e composições próprias, incluindo um relato sobre um rapaz que foi enforcado pelo pai após ser flagrado nu com outro homem. Os assuntos espinhosos não são evitados, portanto: além da discussão sobre o preconceito contra homossexuais, fala-se também sobre a imposição de símbolos religiosos nas escolas, sobre as expectativas acerca do despertar da sexualidade e sobre o Nazismo, inevitavelmente. Não por acaso, uma das palavras mais pronunciadas no filme é trabalho, e o trauma do 'Arbeit macht frei' permanece como uma chaga ainda em aberto na história teutônica. 



Num dos momentos mais potentes do filme, o professor explica aos seus alunos a origem de seu sobrenome germânico, escolhido arbitrariamente a fim de apagar a ascendência polonesa de sua avó. Há diversas situações com esse tipo de intensidade emocional, como quando uma das meninas compartilha o seu véu com uma amiga e explica por que usa esta peça de vestimenta mesmo fora da mesquita ou quando as crianças eventualmente comentam seus cotidianos domésticos. Como tratam-se de imigrantes, eles lidam com variegadas restrições e discriminações, sendo as dificuldades idiomáticas quase irrelevantes, por serem pragmaticamente contornáveis. E é neste sentido que o trabalho de Dieter Bachmann é tão aplaudível: agindo como uma espécie de Paulo Freire alemão, ele também aprende com os seus alunos e ensina-nos bastante por espontânea amostragem. Cantamos juntos em suas aulas e desejamos saber mais sobre aqueles garotos tão fascinantes, que dividem-se entre os que irão para o Ensino Médio, os que irão para Escolas Técnicas e os que precisão emigrar novamente, ao lado de seus pais. Da mesma maneira que o professor sabe que seus alunos continuarão os seus destinos após o ano escolar, a diretora intui que teremos outros afazeres após as quase quatro horas de duração deste excelente documentário. Mas, enquanto estamos vendo o filme e os garotos estão em horário de aula, a educação surge em sua faceta mais orgânica, integrada à vida diária com vistas ao mais belo dos sentimentos, o amor, recitado em múltiplos idiomas ao longo do filme. Consideramo-nos parcialmente formados após aquele desfecho: que venham as próximas classes!



Wesley Pereira de Castro. 

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