quinta-feira, 21 de outubro de 2021

Mostra SP 2021: A GAROTA E A ARANHA (2021, de Ramon Zürcher & Silvan Zürcher)


Um espectador desavisado pensará estar diante de uma regravação pós-moderna de algum enredo antonioniano, por causa dos diálogos que acentuam a incomunicabilidade entre convivas aburguesados e pelos planos que enfocam objetos destruídos ou largados por seus possuidores. Oficialmente, a trama é bastante simples, e versa sobre mudanças. O desenvolvimento do filme, entretanto, disporá estas múltiplas mudanças - tanto literais quanto metafóricas - num cabedal de 'faux raccords', de maneira que as noções de contigüidade física e temporal são contagiadas pela sensação de despertencimento que aflige Mara (Henriette Confurius), que alega ser uma mentirosa compulsiva em mais de um instante. "Eu minto sem piscar os olhos", comenta ela explicitamente; a perspectiva fílmica obedece ao seu modo mui peculiar de organizar os eventos e lembranças... 


No começo, um planta arquitetônica ocupa a tela. Sabemos que ocorrerá uma mudança de apartamento e que Mara é a responsável por este desenho, que será modificado por gravuras infantis e manchas de vinho à medida que a narrativa avança. Mara lembra do instante em que salvou este desenho em formato PDF, e ficou maravilhada diante dos números e letras que embaralharam-se num erro de visualização eletrônica. Ela nunca conseguiu repetir este efeito novamente, impressão que retorna nas historietas que ela narra: sobre crianças que aparecem repentinamente enquanto uma fonte jorrava, sobre o piano abandonado pela camareira de um navio e sobre a aranha que a visitava, quando criança, todas as noites, antes de dormir... Ficou apenas a teia, como é também a tessitura de (des)encontros que ocorre neste filme!


Em sua primeira aparição, Mara é tratada com hostilidade pela mãe de uma amiga, por estar com uma ferida de herpes evidente em seu lábio superior. Sua amiga Lisa (Liliane Amuat) está saindo do local onde residiam, pois pretende viver sozinha, deixando entrever que houve alguma desavença envolvendo Mara. Dois operários poloneses ajudam as amigas, e os gatos e cães de vizinhos invadem a casa, bem como outras pessoas que interagem confusamente com as pessoas citadas até agora. Duas músicas são recorrentemente ouvidas (seja quando tocadas no piano, assobiadas por alguém ou executadas numa festa): o hino dançante oitentista "Voyage, Voyage", cantado pela francesa Desireless, e a valsa "Gramofon", de Eugen Doga. Os personagens encaram a câmera, no afã por estabelecerem contato com pessoas por quem ficaram interessados. Quando mudamos, inevitavelmente abandonamos algo (às vezes, voluntariamente); quando mudam-se subitamente, podemos ter a impressão de que fomos abandonados. "Acima das capitais e das idéias fatais, encare o oceano", diz a letra da canção: ao final, Mara parece ter entendido o conselho... 



Wesley Pereira de Castro. 

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