segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Mostra SP 2021: HIGIENE SOCIAL (2021, de Denis Côté)


Além de ser um dos mais celebrados cineastas da cena quebequense contemporânea, o diretor Denis Côté chama a atenção dos espectadores pelo modo original com que ele apropria-se de técnicas elementares de representação. Neste filme mais recente, a reconstituição do hieratismo straubiano cativa-nos desde o primeiro instante: num prado, o protagonista Antonin (Maxim Gaudette) conversa com a sua irmã Solveig (Larissa Corriveau) sobre a falta de rumo de sua vida. Sem residência fixa, Antonin sobrevive de pequenos roubos e dorme no carro de um amigo que, segundo ele, não gosta muito de banho. É a deixa dialogística para que o título do filme seja pronunciado, quando ele também diz respeito ao modo inusitado como os atores posicionam-se em cena, sem se tocarem, afastados entre si de maneira providencial, como se estivessem a respeitar os protocolos de distanciamento social instituídos para diminuir o contágio pela Covid-19. Há algo de satírico neste posicionamento, entretanto, podendo o filme ser definido genericamente como uma comédia brechtiana de costumes, cuja fotografia idílica permite que sejam notados alguns borrões imagéticos em meio aos planos rurais. 


Os elementos de estranhamento são variegados: por mais que saibamos dos pequenos furtos de Antonin, ele insiste em definir-se como cineasta, contando em mais de uma oportunidade o roteiro que tem o interesse de filmar, sobre um homem que deixa uma tesoura cair atrás de um fogão, quando tentava abrir um pacote de café. Os esforços deste metapersonagem para recuperar a tesoura têm a ver com as tentativas de Antonin em conseguir comunicar-se com as cinco mulheres com quem interage no filme: além de sua irmã, conversa com a esposa Eglantine, com uma amante desejada, com uma funcionária do Ministério da Fazenda e com uma estudante de Teologia de quem roubou um computador e uma jaqueta de couro. Não obstante os diálogos mencionarem aspectos da atualidade (automóveis, Facebook, etc.), duas dessas mulheres vestem-se com roupas de uma época muito antiga. E os aforismos pronunciados pelos personagens parecem isolados em sua pujança discursiva. Que o diga o instante egrégio em que a forçosamente adúltera - e também traída - Eglantine (Évelyne Rompré) dispara que "os homens são como cogumelos: quanto mais bonitos, mais venenosos"!



Não se sabe devidamente qual o intervalo que separa os encontros e não há uma relação direta de contigüidade entre as conversas. É como se Antonin estivesse descobrindo a si mesmo, ainda que não admita que o seu mau caratismo evidente engendre tantos males para quem o circunda: ousa criticar os encontros sexuais de sua irmã e de sua esposa abandonada, irrita-se com as amizades da amante, desvia-se das acusações de sonegação de impostos da funcionária cuja roupa rosada é elogiada, e zomba do potencial teísmo da estudante que ele roubou. Inclusive, é precisamente ele (exceto por uma cena magnífica de dança) quem goza do privilégio da movimentação, utilizando-a para propor um duelo, enquanto as demais mulheres permanecem estáticas a maior parte do tempo. Na trilha musical, a utilização inaudita da canção "Kiss Me Until My Lips Fall Off", da banda germânica neogótica Lebanon Hanover. No desfecho, à guisa de laudo filosófico, Antonin pergunta-se: "como se sente um bezerro diante dos fogos de artifício?". A pergunta talvez seja para nós, que quedamos mesmerizados diante de um filme tão belamente incomum...



Wesley Pereira de Castro. 

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