quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Olhar de Cinema: O DIA DA POSSE (2021, de Allan Ribeiro)


 Logo no início, o protagonista (real) deste filme compartilha com o espectador uma sinopse que já ensaiara para esta obra, e serve-se de uma voz empostada para descrever a própria jornada de exibicionismo programado de que fará parte: estamos em 2020, quando as pessoas ainda estavam acostumando-se à atípica quarentena sugerida como estratégia de proteção contra a COVID-19. Sabemos que este protagonista, Brendo Washington, é baiano e é estudante de Direito. Aparentemente, é o parceiro romântico do próprio diretor, que o menciona orgulhosamente nas videochamadas com os pais. E é repleto de pantins geracionais!


Esse julgamento pessoal poderia ser gratuito e soar agressivo se este não fosse justamente o tema exordial do filme: antes da supracitada sinopse metalingüística, Brendo e Allan são mostrados filmando e conversando sobre os hábitos dos vizinhos. Ao ser questionado se estes também estariam imaginando o que eles fariam naquele instante, Brendo dispara: "claro que sim, as pessoas adoram falar da vida dos outros!". O personagem quase não possui nuanças: é uma caricatura assumida de nordestino instalado no Sudeste, cuja mãe queria que ele estudasse Medicina, que adora o programa de TV "Big Brother Brasil" e que tem a quase certeza de que, um dia, será presidente da República. Um documentário interessantíssimo poderia surgir deste ponto de partida, mas o modo como o filme é montado não permite que o cotidiano desenrole-se: tudo é ostensivamente ensaiado, posado, inatural. Em seus depoimentos senso-comunais, o personagem despeja cacoetes acusatórios e generalizantes, seja quando gaba-se de ser um exímio lavador de pratos seja quando critica a "elite que tem preconceito contra telenovelas". A construção do personagem parece o decalque apressado de um identitarista facebookiano, que zomba de si mesmo - e destas impressões destacadas - a fim de desautorizar previamente qualquer crítica em contrário. Estratégia advocatícia, talvez? 


Ao analisarmos depreciativamente os comportamentos externados por Brendo - que, necessário frisar, só estão sendo aqui mencionados enquanto componentes fílmicos - incorremos inevitavelmente em reações estruturais de preconceito que explicam a conjuntura polarizada do Brasil atual, tema transversal do filme. Neste sentido, o documentário possui serventia enquanto exposição espontânea de como surgem alguns chistes discursivos que pecam pelo imediatismo argumentativo (os chamados "memes"), mas mesmo este aspecto é obliterado por uma conformação factual que oscila entre o pleonástico e o tautológico. Não há qualquer sutileza no filme: Brendo insiste em categorizar o seu parceiro como "cineasta experimental", definindo rapidamente esta expressão adjetiva por causa do modo como ele não se preocupa com cenários, figurinos e afins (o que demonstra-se falso a posteriori); como Brendo é baiano, há uma locução que lista diversas personalidades que saíram de cidades interioranas para tentarem a vida na cidade grande, onde ouvimos nomes tão díspares quanto Belchior e Ana Moser; nos ensaios de cerimônias de posse governamental que tanto fascinam Brendo, a declaração de que ele é médico e advogado torna-se obrigatória. 


Não obstante o próprio personagem elucubrar sobre as pessoas "estarem sempre representando no dia-a-dia", seus gestos são balizados pelas aparências institucionalmente autorizadas, como infelizmente sói acontecer nas duas profissões que ele tanto repete. Não se duvida que o diretor e seu ator principal, amigo e amante, sejam encantadores e simpáticos na dita "vida real", mas, do modo como aparecem nestas gravações, o governo daquele que "percorreu um caminho lúdico até perceber que era pobre" chafurdará na inconsistência das fachadas. Quem sabe ele tenha mais êxito "sendo ele mesmo" ao ser selecionado - tomara! - para o "Big Brother Brasil"... 



Wesley Pereira de Castro. 


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