Partindo do pressuposto teórico de que a identificação primária do espectador é em relação à câmera, os realizadores deste filme utilizam um procedimento até hoje poucas vezes adotado no cinema, que é a narrativa integralmente conduzida pelo olhar subjetivo de um personagem, que é visto apenas através de relances. Levado a cabo anteriormente por cineastas tão distintos como Robert Montgomery e Walter Hugo Khouri - e, em partes, Paul Verhoeven -, este procedimento requer muita observação acerca de como os objetos e os coadjuvantes são dispostos ao redor da pessoa protagonista, que, neste caso, é refletida em mais de um espelho quebrado. Trata-se de uma metáfora óbvia para a condição da atormentada Amen (Mehri Kazemi), cuja voz ouvimos do início ao fim e que anseia por uma cirurgia de redesignação sexual...
A audição ostensiva da voz dessa personagem é essencial para o desenvolvimento tramático, pois ela foi escolhida para uma determinada função justamente por suas características vocais: um magnata que comporta-se como gângster (Mahdi Pakdel) deseja que Amen finja ser a sua filha por algum tempo, mas não revela com sinceridade as condições embutidas nesse processo. Pouco a pouco, Amen perceber-se-á diante de um dilema sobremaneira delicado: permanecer sentindo-se presa num corpo de homem ou poder ser efetivamente uma mulher, porém reclusa numa penitenciária? O filme reforça este dilema através de metáforas visuais um pouco óbvias, como os já mencionados espelhos partidos e o documentário sobre lagartas recolhendo-se em casulos a que ela assiste na TV. O agravante: é perceptível que (quase) todos ao seu redor estão mentindo, inclusive a amiga que apresentou-lhe ao falso benfeitor!
Se, por um lado, parece inusitado que uma produção iraniana traga como temática central o transexualismo, por outro, o roteiro aborda o tema sem preconceito ou exotismo, inclusive enfatizando que há leis federais que autorizam a cirurgia hospitalar de mudança de sexo, sem que hajam reprimendas religiosas neste sentido. Para os espectadores ocidentais, isso é algo deveras inusitado, mas a trama põe este aspecto em segundo plano: o que está em evidência é a situação policialesca em que Amen se envolve, que desencadeia uma série de questionamentos morais e individuais. Sua aparência é imageticamente constituída de maneira parcimoniosa, através de 'close-ups' em sua mãos esfoliadas ou nas unhas pintadas de seus pés. O desfecho deixa em aberto a consecução da negociação-chave que parte de Amen, visto que, como diz um dos visitantes do magnata, "ela possui a resistência dos homens e a paciência das mulheres". O que ela propõe (ou a que ela se submete) é o requisito definitivo para experimentar a condição feminina em seu país? Mais uma válida metáfora é erigida, portanto.
Wesley Pereira de Castro.
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