quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Olhar de Cinema: DEUS TEM AIDS (2021, de Fábio Leal & Gustavo Vinagre)


Ambos os diretores deste filme têm uma relação extensa e mui desenvolta com a sexualidade, geralmente mostrada de maneira transgressiva, em razão de a naturalidade do sexo ainda ser considerada um tabu. Como tal, esperava-se que este documentário possuísse uma similar intensidade na opção pelo escândalo, visto que o título evidencia a frontalidade na abordagem do assunto, ainda evitado ou insuficientemente tratado até mesmo por políticos e personalidades progressistas. O modo como o filme é organizado, entretanto, evita a abordagem explícita e objetivamente didática, ainda que seja inevitável a necessidade de compartilhar experiências sobre um tema tão incômodo - e este é o grande mérito do roteiro: a abordagem é pessoal, a partir das vivências (tão íntimas quanto públicas) de um grupo de entrevistados... 


Logo no começo, um enfrentamento midiático é requerido: enquanto vemos imagens televisivas mal sintonizadas, ouvimos narrações jornalísticas que apresentam a AIDS como doença associada à promiscuidade sexual, abordagem moralista que era comum nas décadas de 1980 e 1990 e que, ainda hoje, é indecorosamente perpetuada. O primeiro depoente confunde-se ao responder uma determinada pergunta, no afã por compartilhar com a equipe como contou para a sua família que havia descoberto que era soropositivo. O processo de identificação empática é imediatamente estabelecido: como não há legendas identificando imediatamente quem são aqueles depoentes - quase todos envolvidos com expressões artísticas - transferimos para eles a impressão de casualidade. São pessoas como nós que, de repente, perceberam-se julgados pela sociedade por estarem doentes. E isso é o que mais nos aflige após a sessão, quando letreiros cotejam tudo o que testemunhamos aos depoimentos e medidas genocidas do atual presidente Jair Bolsonaro. Cabe a nós, enquanto espectadores conscientes, despojar-nos dos preconceitos que ainda retroalimentamos - quiçá inconscientemente - sobre a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida... 


Como era de se esperar num trabalho que reúna os talentos erotógenos destes ótimos diretores, o clímax do documentário é uma performance impressionante, no qual um artista retira seu próprio sangue com uma seringa e depois o insere no orifício anal, antes de deixar-se ser penetrado pelo cabo de uma faca, envolto num preservativo. Em sua fala, a confirmação de algo que perpassa os trabalhos prévios dos realizadores: "gosto de encarar os olhares embaraçados de quem assiste". O choque é necessário enquanto comunicação afetiva, num viés completamente distinto do tipo de alarde contido em obras como "AIDS, Furor do Sexo Explícito" (1985, e Fauzi Mansur) ou "Estou com AIDS" (1986, de David Cardoso). De acordo com o que percebemos neste filme mais recente, ser soropositivo é uma mera circunstância, uma casualidade que, como chama a atenção um pediatra, geralmente é sabida através de terceiros, como se fosse uma fofoca (ainda que bem-intencionada). O diferencial do filme está no modo afirmativo com que os contaminados falam sobre suas próprias vidas, demonstrando que estas não precisam nem devem estar limitadas a questões referentes a tratamentos médicos ou restrições patológicas. Um aidético fode como qualquer outro!



Interessante ressaltar a maneira como alguns adjetivos aparecem no filme, visto que o respeito aos depoimentos permite que, eventualmente, eles se contradigam. Um dos entrevistados, por exemplo, rejeita os discursos excessivamente positivos, no sentido de que, enquanto pessoa deprimida, "não existe ninguém mais negativo do que ele". Não por acaso, é justamente ele o autor da poesia cujo título também batiza o filme, que aborda tematicamente questões como o racismo, a transfobia e outras chagas inorgânicas dos brados identitários. Um dos entrevistados dança sem roupa, na cobertura de um prédio, e uma delas anda pelas ruas, carregando um letreiro eletrônico onde lê-se "eu não vou morrer". São situações que poderiam ser feitas por qualquer um de nós, tanto quanto descobrirmo-nos doentes, de uma hora para outra, após um encontro sexual. Entre as suas competências acessórias, é como se este filme tivesse um viés missionário, mais uma vez aproveitando a urgência dogmática do título: é também positivo ser soropositivo!



Wesley Pereira de Castro. 

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