quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Olhar de Cinema: RIO DOCE (2021, de Fellipe Fernandes)


Para quem não conhece a conformação das regiões urbanas no Estado de Pernambuco, convém adiantar que o título deste filme faz menção ao bairro mais populoso da cidade de Olinda, onde vive o protagonista Tiago (interpretado com um olhar perenemente taciturno pelo 'rapper' Okado do Canal), o modesto trabalhador de uma loja de jogos eletrônicos com recorrentes dificuldades financeiras e uma persistente dor nas costas. Apesar disso, ele insiste em fazer horas extras, o que é desaconselhado por sua patroa (Mariah Teixeira). Como a energia elétrica de sua residência teve o fornecimento interrompido, entre outras dívidas em aberto, Tiago pede um arriscado empréstimo a agiotas, mas também precisa consertar a embreagem de sua motocicleta, passear com a filha pequena, lidar com a melancolia de seu aniversário de 28 anos... 


Percorrendo os espaços como se fosse uma bomba de sêmen e lágrimas prestes a explodir - que homem bonito, mas também tão triste! - Tiago é surpreendido pela visita de uma rapariga (Thássia Cavalcanti) que afirma ser sua irmã. De repente, descobre que seu pai esteve vivo até pouco tempo (contrariando o que alegara a sua mãe, ao longo de toda a sua existência) e que escondeu uma carta, onde havia uma fotografia dele, ainda na infância. Ao visitar a residência das irmãs, numa área privilegiada da cidade de Recife, Tiago enceta uma animada conversa com a babá da família, que morava na mesma região que ele. A luta de classes reserva os afetos para a periferia, onde acontecem os mais intensos encontros. Estes, porém, têm conseqüências!


O entrosamento entre Tiago e seus familiares recém-conhecidos é permeado por um forte desconforto, o que é confirmado pelos olhares preconceituosos de sua irmã mais velha, Catarina (Amanda Gabriel), que desaprova a conotação lúdica dos apelidos dos amigos dele. O roteiro é primoroso no modo como conduz os diálogos - vide a pujança sutil da cena em que Catarina pergunta se Tiago come carne, em sua primeira visita à casa; a situação envolvendo a conversão evangélica de uma vizinha, que precisa desfazer-se de suas queridas imagens de santos católicos; a anedota lombrada de uma prima de Tiago acerca do encontro com um peixe-boi fêmea; e a descrição pormenorizada dos surtos depressivos de Laura (Nash Laila), durante o período em que largou o Doutorado, na cidade de São Paulo. As canções que incidentalmente invadem o filme são providenciais: "A Loba", de Alcione, numa festa de aniversário na casa da mãe de Tiago; "Árvore", de Edson Gomes, numa malemolente versão 'cover' numa celebração de rua, em Olinda; e "Às Vezes, Dói Ser Forte", na voz do próprio Okado do Canal, que expõe fotos pessoais (e artísticas) ao longo da narrativa e durante os créditos de encerramento. É um filme sobre a beleza dos encontros e sobre o poder das memórias. Extraordinário em sua exaltação incisiva da simplicidade. O olhar final da filha de Tiago para a câmera - que, repentinamente, pára de segui-la - que o diga! 


Wesley Pereira de Castro. 

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